Perigosa Travessia

Relato das dificuldades que enfrentamos, eu, mulher e filhos, na travessia do Rio Amazonas, com destino a Alenquer. Esta cidade fica à margem do rio Surubiú.  O único acesso a ela é via aérea, em viagem de 20 minutos, ou via fluvial, em oito horas, tendo como ponto de partida a cidade de Santarém. Partindo de Belém, capital, são três dias.

Meti-me nessa aventura pelo desejo de rever a terrinha e os amigos que lá ficaram. Morei em Alenquer dois anos e meio. Saí de lá em fins de 1974. Dois anos depois, estava retornando para matar saudades. Ao chegarmos a Santarém, escolhemos a via fluvial, menos dispendiosa. Havíamos usado esse tipo de transporte várias vezes, sem nenhum problema. Estendemos nossas redes no convés, e pouco depois os motores do velho barco começaram a roncar. Meu relógio marcava 22 horas. Se fosse uma ficção, diria: o relógio da igreja matriz acabara de dar dez badaladas, e o enorme disco doirado da lua começou a subir lentamente por trás dos velhos casarões da cidade centenária.

O barco deslizou tranquilamente sobre as águas escuras do rio tapajós, que margeia Santarém. Uma hora depois já ouvíamos os sons do turbulento amazonas, o maior do mundo em volume de água, com extensão de 6.500km. Vejam abaixo o encontro dos dois rios:

   Numa vista aérea, suas águas barrentas se apresentam mansas; na verdade, são fortes, impetuosas e chicoteiam sem cessar o casco das embarcações. Nenhuma oração fizemos no início da viagem; não era nosso costume fazê-lo. Confiávamos na experiência do comandante, na potência dos motores, na sorte. Na verdade, os comandantes desses barcos são homens simples, sem formação profissional, mas com muita experiência.  Possuem somente a prática. São chamados de “práticos”.

Lá pelas três da madrugada, fomos acordados pelo barulho do vento e da chuva torrencial; a água batia com força nas lonas laterais de proteção, e molhava nossas redes. O barco balançava muito. Entramos em pânico. Airton Junior e Roberto dormiam. Olhei ao meu redor e vi alguns passageiros colocando coletes salva-vidas. Corri para pegar alguns, mas em vão: acabara-se o estoque.  Ficamos sem. Este é um mal crônico: não há coletes em número suficiente nas pequenas embarcações; não há fiscalização eficaz.  Os barcos que fazem a linha Santarém-Alenquer são mistos: cargas e passageiros. Trafegam quase sempre com carga total. Já ocorreram tragédias na região.

Naquele momento meu pensamento era de confusão total.  Por um instante, arrependi-me de haver colocado em risco minha família. Em determinado momento o proprietário do barco passou rápido, rumo à casa de comando. Ele mesmo assumiu o controle. Fixei bem os olhos na sua fisionomia: era de preocupação.  Deduzi que o momento era grave. Esses homens são acostumados a enfrentar perigos; conhecem cada uma das estrelas, pelas quais se orientam. Não é qualquer chuvisco que lhes tira o sono. Os homens da casa de máquina estavam em alerta máximo.

Que fazer? A sensação de impotência me oprimia. Refleti:

– Viu, Airton, como você não é nada em minhas mãos? Cadê seus amigos? Cadê seu dinheirinho? O que você fará com seu orgulho idiota?

Parecia que Deus falava comigo. Começamos a rezar, eu e minha mulher. Os meninos dormiam. Combinamos que não deveriam ser acordados. Sempre fui um superpai, disposto a dar a vida pela família. Rezamos mais de uma vez a oração do Pai Nosso. O barco balançava, gemia, resfolegava, e, às vezes, alguma coisa estalava. Bastaria uma pancada num tronco qualquer para que todos os meus sonhos fossem a pique.

Vi muitas vezes, quando morei em Alenquer, enorme volume de terra, como ilhas, deslizando pelo Surubiú. Por isso, o comandante girava o holofote de um lado para outro para detectar qualquer objeto flutuante. Troncos de árvores, quase totalmente submersos, são um perigo constante.  Todos desejavam saber se havia terra à vista. Por isso, enfrentando a chuva, fui à casa de comando e gritei bem forte para ser ouvido:

  • Como está a situação? Está longe da costa?
  • Está perto. Já estou avistando terra.
  • O senhor vai parar o barco na costa até passar a tormenta?
  • Vou navegar bem próximo à costa. Não há perigo. Se piorar, lançarei âncora.

Quando voltei, minha mulher estava ainda mais preocupada. Corri o risco de ser jogado para fora do barco. Continuamos acordados e preocupados.  Final feliz. Ainda bem que a graça comum de Deus alcança todos os pecadores. Chegamos a Alenquer. O sol começava a despontar por detrás de grossas nuvens vermelhas.

01.10.2003

Airton Evangelista da Costa

 

 

 

 

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