As Fogueiras da Inquisição – II

“Quem nos separará do amor de Cristo? Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de
Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”
(Romanos 8.35-39).

O Sangue dos Mártires

Momentos antes da morte, muitas vítimas do Tribunal
do Santo Ofício pronunciaram algumas palavras em testemunho de sua inabalável fé. Tamanha era a convicção com que faziam esses breves discursos, que sensibilizavam, às vezes, as pessoas presentes nos autos de fé, como eram chamadas as cerimônias de execução. Para evitar tais “blasfêmias” da parte dos “hereges”, não raro cortavam a língua dos condenados, ou os amordaçavam.

Vale dizer que “ainda no século XI e na primeira metade do XII, protestaram contra a execução de hereges as vozes mais autorizadas na igreja. Eram, ora s.Bernardo, ora Wazo, bispo de Liége, aqui Hildeberto, bispo de Mans, ali Ruperto de Deutz. Relembravam esses cristãos haver Cristo vedado formalmente atos como esses que os papas prescreviam; e asseguravam que o único efeito desse proceder seria gerar a hipocrisia, aumentar decididamente o horror e o ódio dos homens contra a igreja repleta de sangue, contra um clero ávido de perseguições. Só a teoria da infalibilidade podia-nos levar a conceber como, em toda a série dos papas desde Luciano III, não existisse ao menos um que se dispusesse a tomar outro caminho. Se não tivesse havido particular esmero em cultivar essa teoria, e fazê-la vingar a todo o transe, homens brandos, caracteres benévolos como Honório III, Gregório X, Celestino V, sem nenhuma dúvida teriam atenuado a crueza das disposições decretadas por seus antecessores, e imposto raias a essa onipotência ilimitada, em que os papas investiram esses inquisidores vorazes, fanáticos, sanguinários” (1)
Impossível quantificar as vítimas da Inquisição. É certo que milhares sofreram a pena capital, a tortura, a prisão perpétua; famílias que ficaram na mendicância em razão do confisco total dos bens; muitos deixaram a terra natal para fugir às perseguições. Vejamos alguns exemplos.

Arnaldo de Bréscia – Seguidor do ex-padre Pedro Bruys, também queimado na fogueira, em 1126, por haver combatido a corrupção do clero e se convertido ao Evangelho, Arnaldo de Bréscia, religioso italiano, fez severa oposição ao poder temporal dos papas; desejava o retorno da Igreja de Roma à simplicidade do Evangelho da igreja primitiva; rejeitava os sacramentos; condenava a interferência da igreja no Estado, a adoração aos mortos, o sacrifício da missa. Perseguido, procurou refúgio na França, e depois na Suíça. Em 1155, sob o comando direto do papa Adriano IV, foi denunciado, preso em Roma, enforcado e seu corpo reduzido a cinzas.

Giordano Bruno – (1548-1600). Mártir da liberdade do pensamento, um dos maiores pensadores do século XVI. Filósofo, astrônomo e matemático italiano, Filippo Bruno, após ingressar aos 17 anos no convento de San Domenico Maggiore, em Nápoles, adotou o nome de Giordano, tendo sido ordenado padre em 1572. Semelhantemente a Galileu, defendeu o heliocentrismo,o sol como o centro do sistema, tese não admitida pela Igreja Católica. Além disso, Giordano acreditava na astrologia e na reencarnação. Expulso da Ordem dos Dominicanos, foi excomungado e considerado herege. Fez vários estudos e escreveu alguns livros. Denunciado por seu amigo Giovanni Mocenigo, papista fanático, recebeu a sentença de morte do Santo Ofício após oito anos em prisão. Sem nunca haver abjurado suas idéias, foi levado à fogueira aos 52 anos de idade, no dia 17 de fevereiro de 1600, no Campo di Fiori, em Roma. Tiveram o cuidado de colocar uma mordaça em sua
boca para que não pronunciasse qualquer “blasfêmia”.
Olhou com indiferença e desprezo um crucifixo que fora colocado diante dele, para ser beijado. Em carta de 14.2.2000 dirigida ao Reverendo Reitor da Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional, por ocasião de um congresso de estudos sobre a personalidade de Giordano Bruno, o cardeal Ângelo Solano, admite “falhas” com relação ao caso. Eis um trecho:

“É por isto que, entre os sinais do Jubileu, o Sumo Pontífice pôs o da purificação da memória, pedindo a
todos um ato de coragem e de humildade ao reconhecer as próprias faltas e as de quantos tiveram e têm o nome de cristãos. Alguns importantes simpósios desenvolveram-se nesta direção – como por exemplo sobre o anti-semitismo,
a inquisição e João Hus – que se realizaram com o patrocínio da Santa Sé, para estabelecer no plano histórico o desenvolvimento efetivo dos acontecimentos e discernir aquilo que neles deve ser julgado pouco conforme com o espírito evangélico. Semelhante verificação parece importante quer para pedir perdão a Deus e aos irmãos pelas faltas eventualmente cometidas, quer para orientar
a consciência cristã para um futuro mais vigilante na fidelidade a Cristo. Portanto, Sua Santidade soube com prazer que, precisamente com estes sentimentos, essa Faculdade Teológica quer recordar Giordano Bruno que, no dia 17 de Fevereiro de 1600, foi executado em Roma na Praça “Campo de Fiori”, após o veredicto de heresia pronunciado pelo Tribunal da Inquisição Romana”(www.cleofas.com.br/html/igrejacatolica/
historiadaigreja/giordanobruno.html).

Galileu Galilei (1564-1642) – Físico, matemático e astrônomo italiano, fez numerosas descobertas nos campos da Física e da Astronomia. Com uma luneta por ele inventada, descobriu as montanhas da Lua, os satélites
de Júpiter, as manchas solares, as fases de Vênus, os anéis de Saturno. Por 17 anos assume a cátedra na Universidade de Pádua. Conclui que a Terra gira em torno do Sol, e dá fundamentação científica à Teoria Heliocêntrica de Copérnico. Suas descobertas e ensinos foram considerados uma heresia pelos censores romanos, sob a alegação de que contrariavam as Sagradas Escrituras. Acabrunhado, doente, preso em Roma, assinou sua retratação. Antes, os inquisidores lhe mostraram a sala de tortura e os respectivos instrumentos. Combalido e ajoelhado diante dos representantes do papa Urbano VIII (1623-1644), leu e assinou sua retratação:

“Eu, Galileu Galilei, tendo sido trazido pessoalmente ao julgamento e ajoelhando-me diante de vós, Eminentíssimos e Reverendíssimos Cardeais, Inquisidores Gerais da Comunidade Cristã Universal contra a depravação herética… juro que sempre acreditei em cada artigo que a sagrada Igreja Católica, Apostólica de Roma, sustenta, ensina e prega. Mas porque este Sagrado Ofício ordenou-me que abandonasse completamente a falsa opinião, a qual sustenta que o Sol é o centro do mundo e imóvel, e proíbe abraçar, defender ou ensinar de qualquer modo a dita falsa doutrina… com sinceridade de coração e verdadeira fé, abjuro, maldigo e detesto os ditos erros e heresias, e em geral todos os outros erros e seitas contrárias à dita Santa Igreja; e eu juro que nunca mais no futuro direi, ou afirmarei nada, verbalmente ou por escrito, que possa levantar semelhante suspeita contra mim; mas se eu vier a conhecer qualquer herege ou qualquer suspeito de heresia, eu o denunciarei a este Santo Ofício ou ao Inquisidor Ordinário do lugar onde eu estiver. Juro, além disso, e prometo que cumprirei o observarei inteiramente todas as penitências que me foram ou sejam impostas por este Santo Ofício.Mas se por acaso eu vier a violar qualquer uma de minhas ditas promessas, juramentos e protestos (o que Deus não permita), sujeitar-me-ei a todas as penas e punições que foram decretadas e promulgadas pelos sagrados cânones e outras constituições gerais e particulares contra delinqüentes assim descritos. Portanto, com a ajuda de Deus e de Seus Santos Evangelhos, que eu toco com minhas mãos, eu, abaixo assinado Galileu Galilei, abjurei,jurei, prometi e me obriguei moralmente ao que está acima citado; e, em fé do que, com minha própria mão assinei este manuscrito da minha abjuração, o qual eu recitei palavra por palavra”.

A Santa Inquisição não só condenou os ensinos de Galileu, mas também os de Copérnico. O “Tribunal de Deus” assim se pronunciou: “A tese de que o Sol é o centro do sistema e não se move ao redor da Terra, é néscia, absurda, teologicamente falsa e herética, sendo frontalmente contrária às Sagradas Escrituras… A segunda proposição, a de que a Terra não é o centro do sistema mas sim move-se ao redor do Sol, é absurda, filosoficamente falsa e pelo menos segundo o ponto de vista teológico, contrária à verdadeiras fé” (2)

Galileu livrou-se da fogueira, mas passou vários meses sob prisão. Muito doente e cego, veio a falecer no dia 8 de janeiro de 1642. Em janeiro de 1998, passados 356 anos, o papa João Paulo II formalizou o tardio pedido de perdão ao notável astrônomo.
John Wycliffe (1330-1384) – Teólogo inglês, precursor da Reforma, pregava uma Igreja sem a direção papal; combateu a exploração popular com o lucrativo negócio da venda de indulgências, e condenou o excesso de bens materiais dos clérigos. Doutor de Teologia, advogado eclesiástico a serviço da Coroa, nomeado reitor de Lutterworth em 1374. Sua maior obra, contudo, foi a tradução das Escrituras para o inglês, abrindo caminho para que a Palavra de Deus fosse conhecida na Inglaterra. Ousado e destemido, acusou o clero romano de criar clima de tensão e horror ao ameaçar os fiéis com excomunhão; de tentar conter a propagação da Palavra ao proibir a leitura da Bíblia e a sua tradução para línguas conhecidas do povo. Ensinava a salvação somente pela fé em Cristo e a infalibilidade das Escrituras. Chamado a retratar-se por ocasião de uma enfermidade que muito o enfraqueceu, disse: “Não hei de morrer, mas viver e denunciar novamente as más ações dos frades”.Tendo sido levado pela terceira vez ao tribunal eclesiástico, e acusado de heresia, Wycliffe declarou: “Com que julgais estar a contender? Com um ancião às bordas da sepultura? Não! Estais a contender com a Verdade, Verdade que é mais forte do que vós e vos vencerá”. Deus livrou Wycliffe da fogueira: faleceu repentinamente após um ataque de paralisia. Sua voz silenciou, mas sua fé em Jesus Cristo fez discípulos em todo o mundo. Mais de quarenta anos após sua morte, seus ossos foram exumados e publicamente queimados, e as cinzas lançadas em um riacho vizinho (3).

John Hus (1369-415) – Divulgador das idéias de Wycliffe, natural da Boêmia (região histórica da Europa central, hoje integrante da República Tcheca, cuja capital é Praga) depois de completar o curso superior ordenou-se sacerdote, havendo exercido o cargo de professor e mais tarde de reitor da universidade de Praga. Hus, embora não estivesse de acordo com todos os ensinos de Wycliffe, ficou bastante influenciado pelas idéias desse inglês, e resolveu aprofundar-se mais no estudo da Bíblia. O segundo passo foi denunciar o verdadeiro caráter do papado, o orgulho, a ambição e a corrupção da hierarquia. Defendia a Bíblia como sendo a única regra de fé e prática do cristão, e ensinava que a Palavra de Deus podia ser pregada por qualquer pessoa.
Excomungado e acusado de heresia, Hus foi finalmente condenado no Concílio de Constança (1414-1415), no sudoeste da Alemanha, ao qual compareceu, também, como réu, o “antipapa” João XXIII, este acusado por vários crimes cometidos durante seu ministério no período de 1410 a 1415: fornicação, adultério, incesto, sodomia, roubo, simonia, assassinato. O antipapa foi concenado por cinqüenta e quatro crimes, mas não recebeu a sentença de morte. Juntamente com outros “papas” que disputavam o cargo, foi deposto. Preso e lançado numa asquerosa masmorra, Hus escreveu a um amigo: “Escrevo esta carta na prisão e com as mãos algemadas, esperando a sentença de morte para manhã… Quando, com o auxílio de Jesus Cristo, de novo nos encontrarmos na deliciosa paz da vida futura, sabereis quão misericordioso Deus Se mostrou para comigo, quão eficazmente me sustentou em meio de tentações e provas”.
Antes de ser levado ao local da execução, suas vestes sacerdotais foram arrancadas, numa cerimônia de degradação, e sobre sua cabeça colocaram uma carapuça de papel com a inscrição “Arqui-herege”. “Com muito prazer”, disse Hus, “levarei sobre a cabeça esta coroa de ignomínia por Teu amor ó Jesus, que por mim levaste uma coroa de espinhos. Invoco a Deus para testemunhar que tudo que escrevi e preguei foi dito com o fim de livrar almas do pecado e perdição; e, portanto, muito alegremente confirmarei com meu sangue a verdade que escrevi e preguei”. As chamas começaram a tomar conta do seu corpo. Hus orou várias vezes até perder a voz: “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim”. O martírio de Hus se deu em 6 de julho de 1415, no mesmo dia de sua condenação. Suas cinzas foram jogadas no rio Reno.

Jerônimo de Praga (1360-1416) – Reformador religioso tcheco. Seguidor de John Hus e de John Wycliffe, apoiou o primeiro em seu movimento de reformas. Condenado à fogueira como herege. Jerônimo, embora consciente do risco que corria, apresentou-se ao Concílio de Constança no ano de 1414 para defender seus princípios cristãos. Logo após haver confirmado suas idéias “heréticas”, foi encarcerado numa masmorra e alimentado a pão e água. Doente, debilitado e abandonado por amigos, cedeu à pressão dos inquisidores e declarou que retornaria à fé católica. Ainda assim, retornou à prisão e lá permaneceu por trezentos e quarenta dias. Durante esse tempo refletiu sobre a sua fraqueza de fé e se sentiu envergonhado de haver cedido. Verificou que não valia a pena negar as verdades bíblicas para salvar a pele. Novamente perante o Concílio, Jerônimo falou: “Estou pronto para morrer. Não recuarei diante dos tormentos que me estão preparados por meus inimigos e falsas testemunhas, que um dia terão que prestar contas de suas imposturas diante do grande Deus, a quem nada pode enganar. De todos os pecados que cometi desde minha juventude, nenhum pesa tão gravemente em meu espírito e me acusa tão pungente remorso, como aquele que cometi neste lugar fatídico, quando aprovei a iníqua sentença dada contra Wycliffe e com o santo mártir John Hus, meu mestre e amigo”.
E prosseguiu Jerônimo: “Confesso-o de todo o coração e declaro com horror, que desgraçadamente fraquejei quando, por medo da morte, condenei suas doutrinas. Portanto, suplico a Deus Todo-poderoso Se digne perdoar meus pecados, e em particular este, o mais hediondo de todos. Provai-me pelas Escrituras que estou em erro, e o abjurarei”. Um papista perguntou: – Quem pode entender as Escrituras antes que a igreja as haja interpretado? Ao que respondeu Jerônimo: – São as tradições dos homens mais dignas de fé do que o Evangelho do nosso Salvador?”
Quando as chamas começaram a queimar seu corpo, orou ao Pai: “Senhor, Pai Todo-poderoso, tem piedade de mim e perdoa os meus pecados; pois sabes que sempre amei Tua verdade”. Suas cinzas, tal como aconteceu com as de Hus, foram lançadas ao Reno (4).

Joana d’Arc (1412-1431) – Contribuiu para mudar os rumos da guerra de cem anos entre a França e a Inglaterra, ficando conhecida como a heroína francesa. Vítima de uma traição, é feita prisioneira e entregue ao Tribunal do Santo Ofício para julgamento espiritual. O inquérito é comandado por Messire Pierre Cauchon, bispo de Beauvais, a quem coube intermediar o resgate da donzela por dez mil escudos franceses. A alegação era a de que, por ela, “Deus tinha sido ofendido sem medida, a Fé excessivamente afrontada, e a Igreja desonrada”.
Por causa de suas ousadas atitudes, como, por exemplo, vestir-se como homem, foi acusada de feiticeira, sortílega, bruxa, pseudoprofeta, invocadora de espíritos malignos, idólatra, maldita, amaldiçoada, escandalosa, sediciosa, perturbadora da paz do País, incitadora de guerras, cruelmente sequiosa de sangue humano, mentirosa, perniciosa, abusadora do povo, mágica, supersticiosa, cruel, dissoluta, invocadora de diabos, apóstata, cismática e herege.
Joana d´Arc, com apenas 19 anos, foi queimada publicamente na Praça do Mercado Velho, em Rouen (França), em 30 de maio 1431. Vinte e cinco anos depois a Igreja Católica revisou o processo da heroína e concluiu por sua inocência. Em 1909 a “Donzela de Orléans” foi beatificada, e canonizada em 1920, por ato do papa Bento XV (Coleção Vidas Ilustres – Os Libertadores, Fernando Correia da Silva, Editora Cultriz, pg 117-152).

Martinho Lutero (1483-1546) – Considerado o fundador da doutrina protestante, de naturalidade alemã, doutorou-se em Teologia pela Universidade de Wittenberg, e, por esse tempo, leu pela primeira vez a Bíblia. Tendo sido tomado de um imenso desejo de ter uma comunhão mais estreita com Deus, resolveu ser monge e entrou na Ordem dos Agostinianos, no ano de 1505, tornando-se frade em 1507. Lutero levava uma vida de simplicidade, de jejum e orações. A leitura da Bíblia lhe havia despertado a consciência.
Em 1510 esteve sete meses em Roma, a fim de tratar assuntos relacionados com a Ordem, e voltou de lá impressionado com o que vira: luxo, pompa, casas suntuosas para os monges que não raro de banqueteavam fartamente. E não apenas isso. Ele se encheu de espanto ao ver a iniqüidade entre o clero, “gracejos imorais dos prelados, profanação durante a missa, desregramento e libertinagem”. “Ninguém pode imaginar”, escreveu ele, “que pecados e ações infames se cometem em Roma… Se há inferno, Roma está construída sobre ele”.
Ainda em Roma, quando fazia penitência subindo de joelhos a “escada de Pilatos”, ouviu uma voz dizendo: “O justo viverá pela fé” (Rm 1.17). Entendeu, então, que os homens não podem alcançar a salvação por ritos, sacramentos e penitências, como ensinava Roma.
Lutero se indignou com a venda de indulgências. Pecados cometidos, ou os que porventura fossem praticados no futuro, eram perdoados pela Igreja, bastando que o pecador pagasse certa quantia. Lutero pregava que somente o arrependimento e a fé em Jesus Cristo poderiam salvar o pecador. O destemido sacerdote resolveu tomar uma atitude extrema. No dia 31 de outubro de 1517 afixou na porta da igreja do castelo de Wittenberg, cidade da Alemanha, noventa e cinco teses contra as indulgências, fato que teve grande repercussão. Era a primeira vez que um servo do papado se rebelava com tão grande ousadia. Com base na Bíblia, mostrava que o papa nem qualquer homem pode perdoar pecados. “Mostrava que a graça de Deus é livremente concedida a todos os que O buscam com arrependimento e fé”. Rapidamente os ensinos de Lutero se espalharam pela Europa, e as verdades bíblicas começaram a se instalar nos corações. “Assim será a palavra que sair da minha boca: ela não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei” (Isaías 55.11).
“Aquele que deseja proclamar a verdade de Cristo ao mundo, deve esperar a morte a cada momento”. Com esse pensamento Lutero se dirigiu a Augsburgo, cidade alemã, onde se defrontaria com os representantes do papa Leão X (1513-1521). O prelado inquisidor, cheio de ódio, disse-lhe: “Retrate-se ou mandá-lo-ei a Roma”. Roma seria o fim do caminho, o caminho da morte, a morte na fogueira, tal qual acontecera com seu amigo John Hus. Na madrugada do dia seguinte, estando a cidade às escuras, Lutero conseguiu se evadir de Augsburgo contando, para isso, com a ajuda de amigos. Escapou milagrosamente das mãos do representante papal que intentara prendê-lo.
Embora diante de tantas dificuldades, já classificado de herege, excomungado e condenado, Lutero não diminuiu suas severas críticas ao papado e às doutrinas romanas. Disse: “Estou lendo os decretos do pontífice e… não sei de o papa é o próprio anticristo, ou seu apóstolo…” Enquanto a Igreja de Roma subtraía elevados recursos financeiros ao povo, com heresias, superstições e ameaças, Lutero se aprofundava no estudo da Bíblia. Declarava abertamente que não havia distinção entre pecado mortal e pecado venial, pois afirmava, “pecado é pecado, sem gradação, e qualquer pecado leva ao inferno, pois afasta o pecador de Deus”. Boa parte de seus sermões era destinada a protestar contra o comércio das indulgências, dizendo que estas eram inúteis. E perguntava: “Se o Papa pode libertar as almas do purgatório quando lhe dão dinheiro, por que não esvazia de uma vez o purgatório?”
A um enviado do papa Leão X, que lhe propôs uma reconciliação e alegou, como argumento, a autoridade do papa, Lutero respondeu com firmeza: “Só na Bíblia e não no papa reside a autoridade”. E continuou: “O próprio Cristo é o chefe da Igreja e não o papa. Não lhe é permitido estabelecer um artigo de fé, sem base bíblica. O papa é soberano legítimo, não com direito divino, mas humano”.
No dia 15 de junho de 1520, com a bula Exurge, o papa Leão X “condenou quarenta e uma proposições de Lutero, ameaçando-o de excomunhão, se não se retratasse dentro de sessenta dias”. Essa bula condenava, em suma, a liberdade de consciência. O historiador Schaff assim definiu o documento: “Podemos inferir daquele documento em que estado de servidão intelectual estaria o mundo atualmente, se o poder de Roma houvesse conseguido esmagar a Reforma. Difícil será avaliar quanto devemos a Martinho Lutero, no terreno da liberdade e do progresso…” Num gesto memorável de audácia, destemor e ousadia, Lutero queimou a bula papal em praça pública a 10 de dezembro de 1520.
Por mais de uma vez Lutero compareceu diante dos emissários de Roma. Aconselhado a não se apresentar em razão do risco que corria, Lutero respondeu: “Ainda que acendessem por todo o caminho de Worms a Wittenberg uma fogueira… em nome do Senhor eu caminharia pelo meio dela; compareceria perante eles… e confessaria o Senhor Jesus Cristo”.
Na presença do imperador Carlos V, da Alemanha, de príncipes e delegados de Roma, que esperavam uma retratação do excomungado herege, Lutero falou: “A menos que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras, não posso retratar-me e não me retratarei, pois é perigoso a um cristão falar contra a consciência. Aqui permaneço, não posso fazer outra coisa; queira Deus ajudar-me. Amém”.
As tentativas de reconciliação do sacerdote Martinho Lutero com o papado, ou seja, os planos de fazê-lo voltar ao aprisco de Roma fracassaram todos: “Consinto em que o imperador, os príncipes e mesmo o mais obscuro cristão, examinem e julguem os meus livros; mas sob uma condição: que tomem a Palavra de Deus como norma. Os homens nada têm a fazer senão obedecer-lhe. No tocante à Palavra de Deus e à fé, todo cristão é juiz tão bom como pode ser o próprio papa, embora apoiado por um milhão de concílios. Deus não quer – dizia ele – que o homem se submeta ao homem, pois tal submissão em assuntos espirituais é verdadeiro culto, e este deve ser prestado unicamente ao Criador”. Alertado de que estava proibido de subir ao púlpito, recusou-se a obedecer: “Nunca me comprometi a acorrentar a Palavra de Deus, nem o farei”.
Tão logo expirasse o prazo de um salvo-conduto que o imperador lhe concedera, Lutero, conforme resolução do Concílio, deveria ser preso, todos os seus escritos destruídos; a ninguém era permitido dar-lhe comida ou bebida, e os seus discípulos sofreriam igual condenação. Isto, em outras palavras, significava FOGUEIRA. O plano de Deus era outro. Para livrá-lo da morte, um grupo de amigos “seqüestrou” a Lutero e o transportou, através da floresta, para o castelo de Wartburgo, construído nas montanhas, e de difícil acesso. Em 1534 traduziu a Bíblia para o alemão e escreveu muitas obras. O líder da Reforma Protestante faleceu em 1546 na sua cidade natal de Eisleben, na Saxônia, Alemanha (Coleção Vidas Ilustres – Líderes Religiosos, Ruth Guimarães, Editora Cultrix, pg.237/253).

William Gardiner – Inglês protestante da cidade-porto de Bristol, desenvolveu seus estudos em Lisboa a partir dos 23 anos de idade. Indignado com as práticas idólatras que grassava em Portugal, decidiu trabalhar em prol de uma reforma religiosa naquele país. Estava preparado para morrer por essa causa, mas faltou-lhe prudência. Durante a cerimônia de casamento do filho do rei de Portugal e a Infanta da Espanha, estando a catedral lotada por pessoas de todas as classes, não suportou ver a adoração à hóstia. “Correu até o cardeal, tomou a hóstia em suas mãos, e pisoteou-a”. Ali mesmo foi ferido com um golpe de espada. Indagado pelo rei, respondeu: “Faço isso por uma honrada indignação ao ver as ridículas superstições e idolatrias aqui praticadas”. Depois de haver sofrido terríveis torturas, Gardiner foi assado em fogo lento (5).

Encimas – Queimado vivo por ordem do papa e de um conclave de cardeais porque se converteu ao protestantismo. Um irmão dele foi preso porque encontraram em seu poder um Novo Testamento em castelhano, mas fugiu do cárcere antes de ser executado. A igreja Católica não admitia distribuição ou leitura da bíblia em outras línguas (6).

Fanino – Erudito secular, ganhou muitas almas para Cristo. Mesmo sabendo pela boca dos inquisidores que sua família ficaria na miséria, não apostatou da fé. Respondeu que estava entregando sua família aos cuidados do excelente administrador Jesus Cristo. No dia da execução estava muito feliz. Instado a falar, pronunciou suas últimas palavras: “Cristo susteve toda a angústia e lutou com o inferno e a morte por nossa causa. Através de seus padecimentos, quem nele crê é livre de temores”. Foi estrangulado, e seu corpo, queimado. As cinzas foram espalhadas pelo vento (7).

Dominico – Erudito militar, tornou-se um zeloso protestante. Após apresentar o papa como o Anticristo, foi preso. Quando consultado da possibilidade de renunciar às suas doutrinas, respondeu: “Minhas doutrinas?! Não sustenho doutrinas próprias. O que prego são doutrinas de Cristo, e por elas darei meu sangue. E ficarei feliz em padecer pela causa de meu Redentor”. Sofreu o martírio do enforcamento na praça do mercado (8).

A lista das vítimas da perseguição religiosa parece interminável. O inglês John Fox (1517-1587), perseguido durante o reinado da rainha Maria, a Sangrenta, na Inglaterra, no tempo da Inquisição, deixou-nos um minucioso relato dos massacres e crueldades contra os protestantes, homens e mulheres que deram suas vidas em prol da causa do Evangelho. São relatos impressionantes não só pela demonstração de fé desses mártires, mas também pela brutalidade de seus algozes. Conforme relato do referido compêndio, o papa milanês Pio IV, em 1560, ordenou “que todos os protestantes fossem severamente perseguidos nas províncias italianas, e um grande número de pessoas de todas as idades, classes sociais e de ambos os sexos sofreu o martírio”. Sobre esse massacre, um certo católico romano, erudito e humano, escreveu a um nobre senhor: “Não posso, meu senhor, deixar de revelar os meus sentimentos a respeito das perseguições que ocorrem na atualidade. Creio que se trata de algo cruel e desnecessário. Tremo ante a forma pela qual a morte é aplicada. Parece mais um matadouro onde se degolam carneiros e ovelhas, do que a execução de seres humanos…Minhas lágrimas caem agora sobre o papel… Outra coisa devo mencionar: a paciência com que enfrentavam a morte… oravam fervorosamente a Deus com muito ânimo” (9).

Antonio Ricetti, cidadão de Veneza, Itália, ano de 1542, sob a liderança do papa romano Paulo III. “Um bom cristão tem o dever de entregar não somente os seus bens e os seus filhos, senão também a própria vida, para a glória de seu Redentor; por isso, estou decidido a sacrificar tudo neste mundo passageiro, por amor à salvação em um mundo que permanecerá eternamente”. Com estas palavras Ricetti rejeitou renunciar a sua fé, como sugerido por seu filho, e não aceitou uma propriedade rural oferecida pelos papistas, caso abraçasse a fé católica. Com uma pesada pedra amarrada aos seus pés, foi jogado no mar. Igual destino teve o italiano Francisco Spinola (10).

Juan Mollius, italiano, professor, sacerdote aos 18 anos, ao ler as verdades do Evangelho descobriu os erros da Igreja de Roma, dentre outros, Purgatório, Transubstanciação, Missa, Confissão Auricular, Oração pelos Mortos, Hóstia, Peregrinações, Extrema-Unção, Cultos em idioma desconhecido, e outros. Foi enforcado em 1553, tendo o corpo queimado (11).

Francis Gamba – Preso e condenado à morte pela sentença de Milão, Itália. No local da execução, um monge apresentou um crucifixo a ele, a quem Gamba disse: ‘Minha mente está tão cheia dos verdadeiros méritos e da verdadeira bondade de Cristo que não quero um pedaço de pau sem sentido para fazer-me pensar Nele’. Por causa dessa expressão sua língua foi arrancada e ele foi em seguida queimado. Igual destino tiveram Juan Alloysius, Algério e Jacob Bovellus (12).

Um certo moço inglês, que estava em Roma, ao ver a procissão da eucaristia, gritou: “Miseráveis idólatras, que deixais ao verdadeiro Deus para adorar a um pedaço de comida”. Por ordem do papa, foi levado amarrado ao tronco pelas ruas de Roma; teve sua mão direita cortada, e finalmente queimado. Outro que sofreu o martírio das chamas, logo após o do moço inglês, foi um venerável ancião, que assim reagiu ao ver um crucifixo diante de seus olhos: “Se não tirares este ídolo de diante de minha vista, me obrigas a cuspir nele”

Cipriano Bustia foi lançado aos cães porque, com as seguintes palavras, rejeitou o convite de tornar-se católico: “Prefiro antes renunciar à vida, ou até mesmo tornar-me um cão”. Pablo Clemente, ao ver alguns cadáveres de protestantes, que lhe foram apresentados como meio de conseguir sua retratação, disse: “Podeis matar o corpo; porém, não podeis prejudicar a alma de um verdadeiro crente; e acerca do terrível espetáculo que me mostrastes, podeis ter a certeza de que a vingança de Deus alcançará os assassinos desta pobre gente, e os castigará pelo sangue inocente derramado”. Foi imediatamente enforcado (13).

Nos Vales de Piemonte, no século XVIII, no noroeste da Itália, país onde a Igreja Católica detinha inegável supremacia e poder absoluto, inúmeras vidas foram ceifadas porque rejeitaram a proposta de retratação. O “êxito” das atrocidades nessa região deveu-se ao empenho do duque de Sabóia, de comum acordo com o papa Clemente VIII (1592-1605). Vejamos uma amostra das atrocidades. Sebastião Basan foi atormentado por quinze meses e depois queimado; Sara Rastignote des Vignes, de 60 anos, ao recusar rezar a alguns santos, foi destripada e degolada; a jovem Martha Constantine foi violentada pelos soldados, teve os seios cortados, morrendo em conseqüência da hemorragia; o protestante Pedro Symonds, de 80 anos, foi jogado em um precipício, amarrado pelos pescoço e calcanhares; Esay Garcino, cortado em pedaços; Jacob Perrin e Maria Raymondete, esfolados vivos; Magdalena Pilot, esquartejada; Giovanni Pelanchion, por recusar tornar-se papista, foi amarrado a uma mula e arrastado pelas ruas de Lucerna, e depois degolado; Jacob Michelino, presbítero de uma igreja, e vários protestantes, foram pregados por meio de garfos fixados em seus ventres; Giovanni Rostagnal, um protestante de oitenta anos, teve suas orelhas e nariz cortados e assim encontrou ficou sangrando até morrer (14).

NOTAS:
01)JANUS, O Papa e o Concílio, 2a ed., tradução e introdução por Rui Barbosa, São Paulo, Saraiva, 1930,
pp. 521/2
02)DONATO, Hernani, Coleção Vidas Ilustres, vol.VI, Editora Cultrix, 1961, pp. 147,151,152. E artigos diversos na Internet.
03)WHITE, Ellen G., O Grande Conflito, Casa Publicadora Brasileira, Ed. Condensada, 1992, pp.50/59.
04)Ibid. pp.68/71
05)FOX, John, O Livro dos Mártires, publicado em latim
em 1554, 1a ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2001, p. 86
06) Ibid. p. 100
07) Ibid. p.100/101
08) Ibid.p.101
09) Ibid.p.117/118
10) Ibid. p.114/115
11) Ibid. p.116
12) Ibid. p.117
13) Ibid.p.127/129
14) Ibid. pp. 120/125

Ano: 2002 – www.palavradaverdade.com

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