As Fogueiras da Inquisição – História

RODEADA DE UMA AURÉOLA DE FANATISMO e intransigência, a Inquisição constituiu, na verdade, uma instituição complexa, que variou notavelmente de forma segundo os lugares e épocas históricas.
Inquisição, ou Santo Ofício, foi a designação dada a um tribunal eclesiástico, vigente na Idade Média e começo da modernidade, que julgava os hereges e as pessoas suspeitas de se desviarem da ortodoxia católica. Sua origem remonta ao século IV, mas atingiu o auge no século XIII, no combate às heresias e a outras práticas contra a fé e a unidade do cristianismo. Depois entrou em declínio, até ressurgir em novos moldes na Espanha, onde alcançou enorme poderio, e em Roma.

Inquisição medieval. A organização e o prestígio do papado saíram fortalecidos da questão das investiduras, dissenção entre a igreja e o poder monárquico que culminou no princípio do século XII. O regime da cristandade fundira num só bloco a religião, a cultura e o poder civil, como demonstram duas grandes iniciativas da época: as cruzadas e as universidades. Em conseqüência, o aparecimento de numerosos movimentos heréticos, em cujas teses religiosas subjaziam com freqüência demandas sociais, foi considerado uma ameaça geral à sociedade, e, como reação, na segunda metade do século XII, registraram-se muitos casos de execução de hereges na fogueira ou por estrangulamento. Não havia, contudo, um tribunal dedicado especialmente a esses casos.

A igreja reclamava providências severas e metódicas contra toda e qualquer manifestação cismática, conforme decidira o Concílio de Verona, em 1184. Em 1229, ante o fracasso das medidas de repressão contra a seita dos albigenses, na França, o sínodo de Toulouse decidiu instituir um tribunal especial contra os hereges. Finalmente, em 1231, o papa Gregório IX criou o Tribunal da Inquisição — que confiou à recém-constituída ordem dos dominicanos — com o objetivo de investigar, prender e julgar todos os suspeitos de heresia. O tribunal atuou sobretudo no sul da França, no norte da Itália e no reino de Aragão, e, durante algum tempo, na Alemanha. Na Inglaterra, não foi implantada a Inquisição, mas os hereges lolardos — discípulos de Walter de Lollhard, queimado na fogueira em 1320, que se destacavam pela austeridade de costumes — foram condenados por um edito de Henrique IV.
Procedimentos e penas. Os procedimentos para julgamento e condenação dos delitos de heresia foram detalhadamente estabelecidos por cartas do próprio Gregório IX, pelo Manual prático dos inquisidores, de são Raimundo de Peñafort, e, mais tarde, pelo Diretório dos inquisidores de frei Nicolau Eimerich, aragonês como o anterior.
O processo era sumário. Mulheres, crianças e escravos eram admitidos como testemunhas de acusação mas não de defesa. Se o processado delatava parentes, amigos e outras pessoas, passava a gozar de regalias. Era crime, para o Santo Ofício, qualquer ofensa à fé ou aos costumes, como judaísmo, heresia protestante, feitiçaria, usura, blasfêmia, bigamia, sodomia etc. Considerava-se crime de judaísmo acender velas ou usar toalhas limpas no começo do sábado, abster-se de comer carne de porco ou peixe sem escamas e jejuar no dia do Perdão ou da rainha Ester.
O tribunal acolhia denúncias de quem quer que fosse, mesmo feitas por carta anônima. Depois de preso, o réu era submetido a longos interrogatórios, não lhe sendo comunicado o motivo da prisão, nem o crime de que o acusavam ou o nome do denunciante. O advogado de defesa era nomeado pelo Santo Ofício. Os réus que se declaravam culpados eram “reconciliados” com a igreja. Quando absolvidos, assinavam o “termo do segredo”, em que juravam nada revelar do que se passara a portas fechadas. A violação do segredo era equiparada ao crime de heresia.
Os réus que se declaravam arrependidos sofriam vários tipos de punição. A mais rigorosa era a condenação às galés, que equivalia à pena de morte, em virtude das condições do trabalho forçado. A prisão perpétua com o tempo deixou de ser aplicada, sendo as pessoas libertadas, em geral, depois de oito anos. Havia o desterro para lugares distantes ou o confinamento numa aldeia por toda a vida. Era também costume mandar arrasar a casa do herege. Uma das penas mais graves consistia no confisco dos bens, base financeira da Inquisição. Os descendentes dos condenados sofriam por algumas gerações variadas penalidades, como não poder usar seda, portar armas ou andar a cavalo.
O inquisidor fazia pública a sentença, em geral no chamado auto-de-fé. Os réus acusados de crimes mais graves, ou que se recusassem a abjurar os próprios erros, ou reincidissem depois de alguma condenação, eram entregues ao “braço secular” para a execução da pena capital, em geral na fogueira.
A prática da tortura para obter a confissão do réu, habitual nos processos civis da época, foi repelida de início pelos papas, que chegaram a encarcerar alguns inquisidores por sua crueldade. Em 1252, no entanto, o papa Inocêncio IV autorizou o uso da tortura quando se duvidasse da veracidade da declaração dos acusados.
Durante os séculos XIV e XV, a Inquisição decaiu paulatinamente e passou a ser usada, freqüentemente, com fins políticos. Exemplo disso foi a morte na fogueira de santa Joana d’Arc, em Rouen, em 1431.
Inquisição espanhola. Isabel de Castela e Fernando de Aragão, os reis católicos, desejosos de consolidar a unidade religiosa e política da Espanha e de reprimir os judeus falsamente convertidos, que formavam uma poderosa burguesia urbana, conseguiram do papa Sisto IV, em 1478, o direito de nomear inquisidores. A Inquisição espanhola apresentou características próprias e, por isso, mais que uma continuação da decadente Inquisição medieval, constituiu uma nova instituição. De fato, o papa Inocêncio VIII, que sucederia a Sisto IV, teve mesmo que destituir os antigos inquisidores do reino de Aragão que não queriam submeter-se a ela.

Os reis católicos conseguiram a independência funcional da Inquisição espanhola desde o início, o que teve o efeito prático de admitir a jurisdição do estado em matéria religiosa, exercida mediante a nomeação e retribuição dos inquisidores. Em 1483, foi criado o Conselho da Suprema e Geral Inquisição, que funcionava como os demais conselhos do reino, e nomeado inquisidor-geral o dominicano frei Tomás de Torquemada, que passou para a história como personificação do fanatismo e da crueldade: calcula-se que cerca de duas mil pessoas morreram na fogueira enquanto ele ocupava o cargo. A atuação dos primeiros inquisidores em Sevilha foi tão dura que o próprio Sisto IV tentou intervir, embora sem resultado.

A Inquisição chegou também às colônias americanas da Espanha e já em 1519 Carlos V (I da Espanha) nomeou os primeiros inquisidores apostólicos, entre eles frei Pedro de Córdoba. Em 1570 e 1571, Filipe II criou tribunais em Lima e no México; em 1610, estabeleceu-se um em Cartagena das Índias. Os índios não ficavam sob a jurisdição da Inquisição e estavam sob o amparo dos bispos “por serem novos na fé, gente fraca e de pouca substância”. A Inquisição, de qualquer forma, teve nos novos territórios uma marcada feição política, e foram numerosas as disputas entre os diversos representantes reais para obter suas competências e privilégios.
Estabeleceram-se tribunais provinciais, dependentes do Conselho Supremo, que constavam de três inquisidores e de procuradores, oficiais e meirinhos do Santo Ofício. Esses postos eram muito solicitados, já que testemunhavam “limpeza” de sangue e proporcionavam diversos privilégios e isenções. A princípio, a jurisdição recaía apenas sobre os cristãos, mas depois da expulsão dos mouros pressupunha-se como tal toda a população. As acusações apontavam fundamentalmente heresias doutrinárias, mas também a prática de bruxaria e outras superstições, homossexualismo, bigamia e concubinato dos clérigos. Proibiu-se a entrada dos escritos luteranos e estabeleceu-se um Índice de livros proibidos. Entre os acusados que padeceram longos e imerecidos processos figuraram frei Luís de León e santa Teresa de Jesus.
As prisões podiam ser públicas, secretas ou de mera penitência; nestas se permitia a saída durante o dia. Na maioria, permitia-se visitar os réus. As condenações eram semelhantes às da Inquisição medieval, se bem que — sobretudo na primeira fase, quando reinavam Fernando e Isabel — as penas de morte fossem mais freqüentes e se celebrassem em autos-de-fé públicos com ritual solene.
Durante o século XVII, o rigor inquisitorial diminuiu muito e centrou-se sobretudo em delitos de opinião e costumes. As novas correntes ideológicas do século seguinte minaram o prestígio e o poder da Inquisição na Espanha e em seus domínios. Foi finalmente abolida pelas Cortes de Cádiz em 1813 e, ainda que mais tarde tenha havido uma breve restauração, foi definitivamente suprimida em 1834.
Inquisição em Portugal. Assim como na Espanha, a Inquisição em Portugal representava as camadas dominantes — a nobreza e o alto clero –, ameaçadas pela concorrência do numeroso grupo de letrados não-clericais introduzidos no seio da cristandade pela conversão forçada de 1497. Ao grupo cristão-novo, núcleo principal da burguesia em ascensão, passaram a se atribuir todas as misérias da nação. As negociações entre a coroa portuguesa e a cúria romana, que precederam o estabelecimento da Inquisição em Portugal, em 1536, duraram mais de trinta anos. Nesse período, o dinheiro oferecido pelos cristãos-novos à Igreja contrabalançava as contribuições da coroa portuguesa.
O primeiro auto-de-fé realizou-se em Lisboa em 1540. Seguiram-se outros em Lamego, Tomar e Évora. Em 1544, devido a desentendimentos, o papa mandou suspender a atividade do tribunal, retomada em 1547 depois que o rei lhe ofereceu amplas vantagens econômicas. D. João III nomeou inquisidor-mor seu irmão, o cardeal infante Henrique, que cortou toda apelação dos cristãos-novos a Roma. Ficaram então concentradas numa mesma pessoa — rei e inquisidor — a suprema autoridade política e religiosa.
Sob o reinado dos Filipes na Espanha, a Inquisição se consolidou também em Portugal. Intensificaram-se as perseguições, embora tenham permanecido em funcionamento somente os tribunais de Lisboa, Évora e Coimbra. D. João IV, sob influência do padre Antônio Vieira, seu conselheiro, diminuiu as atribuições do Santo Ofício e aboliu o confisco dos bens dos condenados. Em 1674, diante dos abusos da Inquisição portuguesa, o papa Clemente X mandou suspendê-la, mas a força do clero local conseguiu restaurá-la em 1681.
Os autos-de-fé recrudesceram e prosseguiram até meados do século XVIII, quando o marquês de Pombal, dando expressão às tendências mais esclarecidas da época, proibiu a discriminação contra os cristãos-novos nos ofícios públicos e na vida social. Data de 1761 a última condenação à morte pela Inquisição em Portugal e de 1765 o último auto-de-fé público.
Em 1774, um novo regimento proibiu os autos-de-fé públicos e restringiu a pena de morte a casos excepcionais. As regras dos processos inquisitoriais foram substituídas pelas do processo comum. Aboliram-se o segredo das testemunhas, a condenação por testemunhas singulares e a infâmia imposta às pessoas presas e processadas pelo Santo Ofício.
No fim do século XVIII a Inquisição, tanto em Portugal como na Espanha, transferiu suas perseguições aos maçons (pedreiros-livres) e partidários das idéias dos enciclopedistas e iluministas. Até ser abolida, em 31 de março de 1821, vitimou um número de pessoas estimado em quarenta mil, das quais 1.175 foram queimadas. Com a expansão colonial, e porque muitos cristãos-novos fugiram para as colônias, também para lá a Inquisição emigrou.
Inquisição no Brasil. O Santo Ofício da Inquisição nunca estabeleceu oficialmente um tribunal no Brasil, embora tenha sempre agido em terras brasileiras por intermédio das autoridades eclesiásticas locais e visitadores. Os bispos tinham poderes para efetuar prisões, confiscar bens de suspeitos e enviar prisioneiros ou seus processos para a Inquisição de Lisboa, que tratava dos casos relativos ao Brasil.
Na última década do século XVI, o arquiduque Alberto da Áustria, inquisidor-mor de Portugal e colônias, mandou o visitador Heitor Furtado de Mendonça a São Tomé, Cabo Verde, Brasil e à administração de São Vicente ou Rio de Janeiro. A investigação abrangia culpas de sodomia, bruxaria e blasfêmias contra a Igreja Católica, e os elementos mais visados eram os cristãos-novos, acusados de praticarem secretamente rituais judaicos.
A primeira “visitação” do Santo Ofício ocorreu em 9 de junho de 1591, na Bahia, e estendeu-se até 1593, quando seguiu para Pernambuco, onde permaneceu por dois anos. Após a partida do visitador, o bispo da Bahia ficou incumbido da fiscalização. Além de realizar visitações anuais, enviava os processos para Lisboa, prendia, punia e confiscava os bens dos condenados. Os jesuítas, assim como os vigários locais, ajudavam na busca dos culpados e suspeitos.
Em 1618 chegou à Bahia o segundo visitador oficial, Marcos Teixeira, que organizou uma comissão inquisitorial e ali permaneceu até 1619. A partir de 1623, os negócios da Inquisição no Brasil ficaram entregues a um homônimo do visitador, o bispo Marcos Teixeira. De 1591 a 1624 foram processados 245 cristãos-novos, acusados de judaísmo.
Durante as invasões holandesas, a Inquisição recebia denúncias contra cristãos-novos, mas estas eram mais dirigidas contra o inimigo político que contra o herege. Em 1646 realizou-se no Colégio da Companhia de Jesus na Bahia uma “grande inquirição”. Foram ouvidas mais de 120 testemunhas e denunciadas mais de cem pessoas, entre cristãos-novos, blasfemos, hereges e feiticeiros.
Na primeira década do século XVIII, a Inquisição fez prisões em massa. No auto-de-fé de 1711 havia 52 brasileiros. As perseguições e os confiscos de propriedades nesses anos levaram a uma paralisação crescente na fabricação do açúcar, principal artigo de exportação do país, e prejudicaram seriamente o comércio. De 1694 até 1748, 18 brasileiros foram condenados à morte pela Inquisição de Lisboa. O último brasileiro condenado pela Inquisição morreu no auto-de-fé de 20 de outubro de 1748, em Lisboa.
Inquisição romana. Uma outra forma de Inquisição foi instituída pelo papa Paulo III em 1542 para combater o protestantismo e, provavelmente, com o propósito de atuar com independência em relação à Inquisição espanhola, que tentava instalar-se na Itália. Essa Inquisição atuou de modo geral com moderação, exceto nos pontificados de Paulo IV (1555-1559) e Pio V (1566-1572). Na reforma da cúria realizada por Pio X em 1908, essa instituição transformou-se na Congregação do Santo Ofício e, em 1965, após a reforma de Paulo VI, subsistiu como Congregação para a Doutrina da Fé.
Auto-de-fé; Bruxaria; Cristão-novo; Torquemada, Tomás de
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