Àfronta à Democracia

Afronta à democracia
(18/6/2007)

Estado de São Paulo

Carlos Alberto Di Franco

Impresso em 40 mil exemplares, um panfleto produzido para ser distribuído na Parada do Orgulho Gay de São Paulo pretendia orientar os participantes sobre o uso da cocaína e outras drogas. Para cheirar, prefira um canudo individual a notas de dinheiro, dizia o material destinado aos usuários de cocaína. Faça uma piteira de papel se for rolar um baseado, recomendava didaticamente aos adeptos da maconha.

A cartilha estampava o selo do governo federal. O Ministério da Saúde confirmou que os dados utilizados são coerentes com a sua política de redução de danos. Também estavam impressos no folheto logotipos dos programas contra DST/aids do governo estadual e da Prefeitura de São Paulo, do Ministério do Turismo e da Embratur. Ninguém, no entanto, quis assumir a iniciativa. Regina Facchini, vice-presidente da Parada do Orgulho Gay, disse que o objetivo do texto é alertar para o risco de contaminação durante o uso de drogas. E sublinhou: É a idéia de redução de danos para afastar riscos de doenças transmissíveis, como a aids.

Sob o pretexto da redução de danos, sutil eufemismo do uso e abuso de drogas, o que se pretende é abrir uma avenida para o consumo de entorpecentes. Como perguntou alguém, armado de compreensível perplexidade: 40 mil exemplares para 3 milhões de participantes? Se cada folheto passasse por, digamos, dez pessoas, seriam 400 mil as orientadas. Como falta de verba não parece ser problema quando se trata desses assuntos, das duas, uma: ou subestimaram a urgente tarefa de reduzir danos ou esse panfleto foi feito só para marcar uma posição ideológica, um clássico balão-de-ensaio para testar os limites de tolerância da sociedade. Feita a sondagem, os organizadores recuaram e os folhetos foram recolhidos. Não obstante, foi uma bofetada pública na lei. Assistimos, todos, a mais um sintoma da perigosa anemia ética e jurídica que vai tomando conta do organismo nacional.

Recentemente, uma organização não-governamental pró-aborto decidiu adotar atitude análoga. Segundo informação da imprensa, em setembro, a Bem-Estar Familiar no Brasil (BemFam) iniciará em Campinas um projeto para orientar interessadas em interromper a gravidez. Não vamos incentivar o aborto, só orientar mulheres para que optem pelo mais seguro, justificou o secretário-executivo da organização, Ney Costa. Se a mulher está convicta, o mínimo que podemos fazer é informá-la, disse Costa. O projeto recebeu financiamento da Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF).

A Secretaria de Saúde de Campinas submeteu a proposta da IPPF à avaliação de especialistas. Segundo o coordenador da Saúde da Mulher, Fernando Brandão, o acesso a informações sobre aborto é tema polêmico e deve ser estudado com cautela. O projeto nos foi trazido, estamos avaliando e achamos que merece atenção, inclusive de Secretarias de Educação, Cultura, Assistência Social e Coordenadoria da Mulher, para tomarmos posição firme, já que informar é bom, mas o tema é polêmico, afirmou.

As pessoas estão perdendo a sensatez, reagiu o professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Cezar Bitencourt. Ele argumentou que a orientação prevista no projeto nada mais é do que apologia ao crime. Uma coisa é discutir a mudança da lei. Outra é desprezar o que está em vigor, concluiu o professor. Já o secretário-executivo da BemFam, Ney Costa, armado de um sofisma afiado, argumenta que o projeto não fere a lei: Ele se baseia no direito à informação, elemento básico da cidadania.

Sou um apaixonado pelo direito à informação. Empenhei-me inúmeras vezes na sua defesa. Mas não se pode cair no equívoco de dar ao direito à informação a qualidade de um direito absoluto, esquecendo que direito absoluto não significa direito ilimitado. Afirmar que um direito é absoluto significa que ele é inviolável nos limites que lhe são assinalados pelos motivos que justificam sua vigência e, sobretudo, que esses limites são balizados pelo respeito à dignidade humana, aos valores éticos e à lei. Não se pode, em nome do direito à informação, fazer a apologia de comportamentos que confrontam a lei. É uma afronta à democracia.

De resto, mesmo que exista uma demanda de criminalidade, deve-se aceder a ela? Suponhamos que exista um público interessado em abuso sexual de crianças, assassinatos ao vivo, violências desse tipo. Nem por isso a sociedade admitiria a existência de programas de TV especializados em pedofilia e assassinatos. O mercado não é um juiz inapelável.

A informação, despida de orientação moral, acaba sendo contraproducente. Pesquisas revelam, por exemplo, que adolescentes bem informados continuam tendo condutas sexuais de alto risco. Na verdade, as campanhas de educação sexual não têm sido capazes de neutralizar a influência do gigantesco negócio do sexo, que, impunemente, determina a agenda do mundo do entretenimento. Vamos ser claros: as campanhas de prevenção da aids chocam de frente com programas de auditório que fazem do sexo bizarro uma alavanca de audiência. Assim, não tem jeito.

Qualquer construção democrática, autêntica, e não apenas de fachada, reclama os alicerces dos valores éticos e da lei. No respeito aos seus princípios está o melhor antídoto contra aventuras ditatoriais. Por isso, só se pode construir uma autêntica ética da informação apoiada em sólidos fundamentos de caráter antropológico. Caso contrário, o processo informativo, em nome da liberdade de informação e de expressão, se transforma, cedo ou tarde, numa arma para destruição da própria democracia.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia

E-mail: [email protected]

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