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Escritos de Osorio de Vasconcellos
Série 2008
Pára, pai.
Pára, pai. Vizinhos garantem ter ouvido uma criança proferir estas palavras na noite do crime. Essa criança pode ter sido Isabella, de seis anos, que morreu, ou seu irmãozinho, de três, que sobreviveu.
Digo proferir palavras, provisoriamente, sabendo que uma criança de três ou seis anos ainda não aprendeu a proferir, isto é, ainda não objetivou a palavra como entidade diferenciada de suas vivências. A criança, como sabemos, carrega o coração na mão, vale dizer, opera o milagre de jungir numa unidade só a fala e o sentimento.
– Pára, pai – portanto, na percepção infantil será tudo, menos um discurso.
Será antes o arranco de um impulso moral logo recalcado. Recalcado pela incapacidade de conter fisicamente as ações que se perpetravam ali, na noite do crime.
Talvez o primeiro impulso moral da criança, cujo destino, a partir de então, será implacavelmente assediado pelo recalque.
Em defesa deste ponto de vista, lembro que, a partir de três anos de idade, conforme ensinam os manuais de Psicologia, as crianças começam a desenvolver os aspectos básicos de responsabilidade e de independência; e passam a se identificar com outra pessoa por causa de vários motivos, incluindo laços de amizade, semelhanças físicas e psicológicas.
Em leitura recente deparei com a idéia de que não cabe atribuir estilo às criações infantis. Naquela altura tomei, e ainda hoje tomo por razoável a proposição, visto que estilo, como definiu Buffon, é marca de homem, isto é, de homem desenvolvido.
Nada obstante, atrevo-me a identificar estilo em Pára, pai.
Não, é claro, o estilo consciente das estruturações estéticas, mas o estilo mágico das motivações inconscientes.
Defendo que a seqüência Pára, pai – e não Pai, pára – reflete a hierarquia que estruturava a cena presenciada pela criança, cujos tenros olhos viam, primeiro que tudo, a carência elementar, a dor, a turvação e o desamparo da outra criança, companheira de sonhos e folguedos.
Pára! – foi, portanto, o comando categórico, imediato, que irrompeu das profundezas d’alma, em favor da dignidade e da vida.
Será preciso descer um pouco mais ao fundo, como os mergulhadores de Coromandel, para arrancar a pérola encravada no vocativo pai.
Quero auscultar ali a pulsação debilitada de um coração exangue, a inflexão minguante da razão que desertou, o frio impiedoso da solidão absoluta.
Quero, enfim, ouvir ali o gemido amargo da Inocência mais uma vez crucificada.
Desgraçadamente esse tipo de tortura não consta dos libelos de acusação.
Sugiro discutir a lacuna logo mais ao almoço, neste festivo Dia das Mães.
Caucaia (CE), 11 de maio de 2008