O Pequeno Judas às Avessas

O pequeno Judas às avessas
por Norma Braga em 13 de fevereiro de 2007

Resumo: No Brasil de hoje, há muitos dispostos a corroborar ou a justificar o ato monstruoso contra o menino João Hélio.

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Sem dúvida um dos piores acontecimentos dos últimos anos no longo currículo de violência do Rio de Janeiro, o assassinato do menino João Hélio mortificou a todos nós que temos um mínimo apreço pela vida.
Lemos estarrecidos que um grupo de homens, entre eles um menor, rendeu a mãe e a irmã de João Hélio e as tirou do carro sem se importar com o fato de que o menininho, de seis anos, continuara preso à cadeira de trás pelo cinto de segurança. O carro arrancou com o corpinho pendurado do lado de fora e continuou rodando por alguns quilômetros, uma versão urbana e macabra da morte arrastada por mula. Houve quem testemunhasse que, ao gritar para o grupo na rua sobre o que acontecia, a resposta foi acompanhada de risos: “É o nosso Judas.”
“É o nosso Judas.” Essa é a fala da turba ensandecida, da voz sem rosto das massas, do espírito coletivo assassino que faz encarnar o bode expiatório até mesmo em crianças inocentes. É a fala de quem decide arbitrariamente, como um deus, quem representa o mal e como purgar esse mal, passando ao ato sem remorso porque não duvida de seu próprio julgamento. Na televisão, o autor da frase respondia a perguntas de modo mecânico, parecendo não entender por que tanta comoção em torno do fato. Alguém ainda tentou trazê-lo de volta à espécie humana: “E se fosse seu filho?” Era uma forma de inseri-lo na tragédia, de lembrar-lhe que a humanidade que estava nele também estava no menino. “Não tenho filho”, deu de ombros. Não, ele se recusava a entrar no mesmo mundo que aqueles seres estranhos. O mal estava no outro, havia confessado isso a si mesmo e aos que estavam presentes para ouvir. “É o nosso Judas” equivalia a dizer: “Não temos culpa a apaziguar: decidimos o culpado e decidimos seu sacrifício.”
No Brasil de hoje, há muitos dispostos a corroborar ou a justificar o ato. Membros desalentados da classe média que há anos associam o crime à pobreza, à falta de escolaridade e à criação familiar – uma grande injustiça para com os pobres honestos e os pais esforçados – surgem aqui e ali na mídia a cada tragédia anunciada, batendo no peito e recitando o mea culpa. “Sim, todos nós somos culpados”, bradam, respondendo ao furor assassino da multidão que clama por aquele que deve ser morto. São os bodes expiatórios voluntários a esperar sua vez, perpetrando a série de sacrifícios e obliterando toda ação mais enérgica, mais eficaz, para interromper o ciclo de violência. Alegam uma lógica de difícil comprovação racional: a que declara que os “excluídos” – seja lá o que isso signifique: pobres, abandonados, esquecidos – fatalmente cobrarão das classes média e alta o seu quinhão de ódio, e terão razão. Frutos da dicotomia marxista da luta de classes, essas idéias são poderosos fatores de deslocamento de culpa, esmaecendo toda noção de responsabilidade pessoal. Nutrem-se do desconhecimento das múltiplas causas da pobreza e do abandono e estimulam a condescendência com o crime quando sua motivação principal está na cobiça e na inveja. Não admira que a impunidade seja um dos maiores problemas enfrentados no país: essa maçaroca conceitual e sentimentalista oculta aos olhos o mal intrínseco à natureza humana, agindo como um entorpecente que paralisa as duas maneiras diretas de lidar com o crime quando este se afigura inevitável: vigilância e punição.
Mas o criminoso que diante das câmeras nada demonstrava de sua humanidade não era exatamente um excluído, um abandonado, um esquecido. Podia não ser rico, mas tinha estrutura familiar, tinha um pai que conversava com ele e lhe dava conselhos, tinha namorada, amigos, valores a servir de modelo. Da mesma forma, o cúmplice menor que o assistira vinha de uma família cristã evangélica. “Sempre ensinei a palavra do Senhor”, contou seu pai. A fé cristã não admite falsas alegações de inocência, já que se baseia no reconhecimento individual, doloroso e libertador, de que somos pecadores, e na aceitação do sacrifício de um só inocente, Jesus Cristo, para a remissão do mal. Já o mecanismo do bode expiatório, segundo o filósofo René Girard, absolve os sacrificadores e culpabiliza a vítima, continuamente. Se o cristão sincero, em obediência a Cristo, precisa se responsabilizar pelo mal que lhe cabe, o espírito do anticristo pede que seus seguidores desloquem toda culpa para fora de si: eis o motor maior da violência. E, assim como há anticristos, há antijudas, os alvos inocentes da ira aleatória destinados a satisfazer o incessante clamor de sangue por parte de quem se crê acima de todo julgamento.
Hoje, quem de fato se preocupa com o assassino de João Hélio deveria desejar sua confissão e seu arrependimento, não apenas por motivos religiosos, mas para que ele ousasse iniciar um penoso movimento de retomada de sua dignidade humana. Em lugar disso, fora da família, ele encontra nos ecos de representantes midiáticos uma sólida estrutura autoculpabilizante que o confirma no lugar do bom algoz, do fiel depositário das esperanças vingativas dos discípulos de Marx. Ainda que não expresse nada disso de modo consciente, esse assassino sabe que conta com a ruidosa confirmação da boca desses discípulos: você tem razão, somos todos culpados, merecemos isto.
De modo paradoxal, é nesse momento que se tornam verdadeiramente culpados.

Norma Braga é escritora, doutoranda em literatura francesa pela UFRJ, tradutora e professora de francês. Edita o blog Flor de Obsessão, em que correlaciona cristianismo, filosofia e política, denunciando sobretudo as falácias do marxismo cultural.

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