As Fogueiras da Inquisição – Reflexão de Leonardo Boff

Fonte: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/
inquisidor/prefacio.html

a) A Inquisição contradiz o bom senso das pessoas. Como se po­de, em nome da verdade e ainda mais da verdade religiosa, perseguir, torturar, matar tanto e de forma tão obsessiva? Importa enfatizar que, mediante a Inquisição, a Igreja hierárquica introduziu os sacrifícios hu­manos. O auge do sacrificialismo furibundo da Inquisição no século XVI na Europa corresponde aos sacrifícios humanos perpetrados pe­los colonizadores espanhóis chegados ao nosso Continente contra as culturas originárias dos astecas, maias, incas, chibchas e outras. Quando Hernán Cortez penetrou em 1519 no planalto de Anahuac no México, havia no Império asteca 25.200.000 habitantes. Menos de 80 anos, em 1595, só restaram 1.375.000 habitantes. A dizimação global, por guer­ras, doenças, excesso de trabalho-escravo na encomiendas, desestrutu­ração cultural, nos dois primeiros séculos da colonização-invasão, foi da ordem de 25 por 1. Quem oferecia mais sacrifícios humanos: os as­tecas, que faziam sacrifícios rituais ao deus Sol para que sempre vol­tasse a nascer e assim garantisse a vida para todos os povos e para o universo, ou os espanhóis, que sacrificavam ao deus Mamona para se­rem ricos e fidalgos na Espanha? E sobre isso os bispos reunidos no Concílio de Trento (1545-1563), contemporâneo a todos esses fatos, não dizem sequer uma palavra. Estavam ocupados com questões in­ternas da Instituição em confronto com a Reforma de Lutero.

A verdade possui, em si, uma dimensão de libertação e humaniza­ção. Na Inquisição ela é afogada. Repugna à inteligência assumir uma pretensa verdade à força do terror.

b) A Inquisição contradiz o sentido da verdade religiosa, da ver­dade simplesmente e a natureza da religião. A verdade é como o sol. Ele ilumina a todos e a todos se dá. Pode dizer a montanha à planta que está ao seu pé: por que sou mais alta e sou a primeira a ser bafeja­da pelo sol, você, plantazinha ao meu pé, não tem direito de receber sol nenhum? E a luz que tens não é luz e não vem do sol? Seria absur­do o discurso da montanha. E seria menos absurdo o discurso da teo­logia (ideologia) da verdade absoluta que subjaz aos órgãos de controle e repressão das doutrinas na Igreja romano-católica que nega verdade às outras religiões e a outras confissões cristãs?

Todos estamos em algum nível da verdade. Como também todos estamos a caminho de uma verdade mais plena. A verdade não está apenas nas frases verdadeiras. Ela está fundamentalmente na vida, na profundidade do coração, nas relações entre as pessoas, no curso da história. Ela pode ser expressa de mil formas, num poema, numa mú­sica, numa catedral, numa parábola e num discurso.

Na história, nossas formulações exprimem a verdade absoluta que está em todos, mas não logram exprimir todo o absoluto da Verdade. No dito fica sempre o não-dito. E todo ponto de vista é sempre a vista de um ponto. Por isso haverá sempre possibilidade de se dizer a verda­de e a fé em doutrinas expressas em marcos inteligíveis de uma outra cultura, de uma outra tradição espiritual e, por que não dizê-lo tam­bém, no código de uma outra classe social. A Inquisição é contra a natureza da religião. Esta trabalha o sagrado que está na profundida­de de cada pessoa, na história e no cosmos. O efeito da prática religio­sa é a potenciação do sentido da vida, do sentimento de salvação, da formulação de uma esperança contra toda esperança e do apreço e sal­vaguarda da vida e do menor sinal de vida. Uma religião que produz morte e exige sacrifícios humanos desnatura a religião e se transforma num aparelho de controle social.

c) A Inquisição nada tem a ver com Cristo, nem com o seu Evan­gelho. Se tem a ver, é contra eles. O próprio Cristo foi vitima da inqui­sição judaica de seu tempo. Como em seu nome instaurar uma inquisição? Não esqueçamos que o Grande Inquisidor de Dostoievski acabou condenando Jesus Cristo. Nem tem a ver com a Igreja em sua compreensão maior, teológica e sacramental. Pois a Igreja como co­munidade dos professantes procura manter viva a memória de Jesus, do seu sonho, da irradiação do seu Espírito, na profunda alegria de sermos todos filhos e filhas de Deus e por isso irmãos e irmãs de toda humana criatura e de cada ser do universo. A Inquisição tem a ver sim com a patologia como distorção dessa convicção, e com o pecado co­mo negação prática dessa proposta, carregada de promessa e de uto­pia. Mas sejamos realistas: quem é são pode ficar doente. E quem está na graça pode pecar.

A “Santa” Inquisição é expressão de um componente neurótico-obsessivo do corpo clerical e cristaliza a dimensão de pecado que exis­te nas relações internas da Igreja. Pois, a própria Igreja-comunidade de fiéis se confessa santa e pecadora. Se assim é então aqui é o pecado Institucional que ganha a cena e a ocupa durante séculos. Seu espírito vaga assustador até os dias de hoje. E devemos nos precaver contra ele. Antes, ajudar a própria instituição eclesial a ser fiel à sua utopia originária e a ser um lugar de exercício de liberdade e de experimenta­ção da graça humanitária de Deus. E isso se fará na medida em que os professantes da fé romano-católica se reapropriarem daquilo de que foram historicamente despojados: sua capacidade de experimentar o sonho de Jesus, de dizê-lo de forma criativa e responsável no interior da comunidade, de confrontá-lo solidariamente com outras experiên­cias do evangelho de Deus na história e articulá-lo com o curso do mun­do, onde se revela também e principalmente o desígnio de benquerença e de amor de Deus.

A comunidade cristã viveu séculos sem a Inquisição. Isto significa que não precisou dela para viver e sobreviver. Portanto, ela é supér­flua. Sua existência mantém o mesmo escândalo, denota uma patolo­gia e concretiza um pecado. Nunca teve direito a existir. Não deve mais existir. Por amor a Deus, por fidelidade a Jesus Cristo e por respeito às opiniões religiosas diferentes nas sociedades humanas.

http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/inquisidor/prefacio.html

LEONARDO BOFF
Prof. de ética e Teologia na UERJ
Rio de Janeiro, Sexta-feira Santa da Paixão de 1993.

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