As Fogueiras da Inquisição – I

“Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos, levando sempre por toda a parte o morrer do Senhor Jesus no nosso corpo, para que a vida de Jesus se manifeste também em nosso corpo” (2 Coríntios 4.8-9).

Em 1231, no Concílio de Toulouse, sob a liderança de Gregório IX, papa de 1227 a 1241, foi oficialmente criada a Inquisição ou Tribunal do Santo Ofício, um tribunal eclesiástico que julgava os hereges e as pessoas suspeitas de se desviarem da ortodoxia católica. Em 1252, o papa Inocêncio IV (1243-1254) publicou o documento “Ad Exstirpanda”, autorizando a tortura e declarando que “os hereges devem ser esmagados como serpentes venenosas”. Referida ordem foi confirmada, renovada e reforçada pelos papas Alexandre IV (1254-1261), Clemente IV (1265-1268), Nicolau IV (1288-1292), Bonifácio VIII (1294-1303).

Na reforma da cúria realizada por Pio X em 1908, O Tribunal do Santo Ofício transformou-se na Congregação do Santo Ofício e, em 1965, após a reforma de Paulo VI, subsistiu como Congregação para a Doutrina da Fé. Oficialmente, a Inquisição durou mais de cinco séculos.

As perseguições e matança, todavia, se iniciaram muito antes de 1231. Adriano IV, papa de 1154 a 1159, “mandou executar [em 1155] o turbulento Arnaldo de Bréscia por enforcamento, depois mandou queimá-lo e atirar no Tibre as suas cinzas” (1). O crime do religioso italiano Bréscia foi opor-se ao poder temporal dos papas. Em 1179, o terceiro Concílio de Latrão, decretou a perseguição permanente aos ”hereges”. Pelo quarto Concílio de Latrão, em 1215, os governantes seculares receberam ordens para confiscar os bens dos “hereges” e depois os executar, sob pena de, não o fazendo, serem excomungados e sofrerem as sanções devidas.

Não houve qualquer proposta ou movimento, em qualquer época, com o objetivo de apurar e julgar, mediante a constituição de um tribunal internacional, os bárbaros crimes cometidos pela sanguinária Inquisição, pelo menos para exigir indenização às famílias das incontáveis vítimas que tiveram seus bens confiscados, principal fonte de renda da Inquisição.

“Na Inquisição, uma defesa vale bem pouco para um preso, pois uma mera suspeita é considerada suficiente para a condenação. E, quanto maior a riqueza, maior perigo. Grande parte das crueldades dos inquisidores deve-se a sua ambição: destroem vidas para possuir riquezas e, sob o pretexto de zelo religioso, saqueiam as pessoas a quem odeiam” (2).

Com o surgimento de meios mais rápidos de comunicação, como a internet, e de tradução e divulgação de livros sobre o tema, abriram-se mais ainda as imundas masmorras dos tribunais da Inquisição. Ali, vemos homens e mulheres, novos e velhos, jovens ou anciãos sofrendo os mais cruéis suplícios já registrados na história; homens mutilados aos poucos, com intestinos à amostra; colocados em chapa ardente para serem assados, ou em água fervente para serem cozidos; queimados em fogo brando; esfolados vivos. A visão é terrível. Gemidos, gritos de dor abafados; carrascos e papistas impassíveis.

Várias expressões têm sido usadas para qualificar a satânica Inquisição, como a seguir, extraídas de alguns livros: tribunal sanguinário; exemplo de crueldade; bárbaros inquisidores, sem misericórdia; tirania eclesiástica; desalmados papistas; matança com requintes de crueldade; minuciosas e inconcebíveis torturas; cruéis perseguidores; papistas cegos pelo fanatismo; crueldade sistemática, regular e progressiva; horrendo tribunal, nada o excedendo em barbarismo e ferocidade. “Satânica Inquisição”, em lugar de santa Inquisição, é um termo apropriado. É muita inocência não se imaginar que o diabo não estivesse por trás de tudo isso, pois ele mata, rouba e destrói. Assassinatos, confiscos de bens e terror foi o rastro deixado pelos tribunais de inquisição por onde passou.

Caminhamos mentalmente por essas masmorras imundas onde imperam o ódio e a insensibilidade diante da dor alheia. O ambiente mais parece o de uma fábrica. Fábrica ou açougue? Fábrica de quê? Ah!, uma perfeita fábrica de matar hereges. Roldanas, macas, cadeira com pregos afiados, ferros incandescentes, pinças, pesados blocos de pedra, correntes, garfos enormes, chicotes com pontas de ferro, cordas, um funil, um machado afiadíssimo, guilhotina, tronco, máscaras de ferro, forquilhas, garrotes, serrotes, esmagadores de joelhos, de cabeça, de polegares e de seios; cavaletes, e outros utensílios de trabalho.

Fixamos nossa atenção nos rostos pálidos dos torturados. Muitos imploram para morrer; muitos dizem “peçam-me qualquer coisa e eu farei”. Outros, que passaram para a galeria dos heróis da fé, enfrentam a dor com resignação. São cadáveres ambulantes. Muitos estão na terceira, quarta ou quinta sessão de tortura. Se não resistem, seus corpos são queimados e as cinzas lançadas em algum rio. Os Inquisidores conhecem o limite da dor. Quando algum desgraçado protestante chega ao limite, é entregue aos cuidados do médico cirurgião que cuidará de suas feridas e dos ossos quebrados ou deslocados. Alegam que a tortura não foi concluída, mas suspensa. Após algumas semanas, retornam para novos interrogatórios. Os que forem levados à fogueira terão suas línguas arrancadas para outros não ouçam suas últimas “blasfêmias”, e por elas não fiquem contaminados.

Fora dos porões, nas principais praças das cidades em que se instalou a diabólica Inquisição – Alemanha, França, Espanha, Inglaterra, Portugal, Brasil – encontramos a procissão macabra e pomposa dos condenados a caminho da fogueira, os chamados Autos de fé. Não temos notícia de que no Brasil tenha havido espetáculos dessa natureza. Mais adiante trataremos da Inquisição no Brasil. A solenidade e a pompa são indispensáveis. Previamente preparados, estão o patíbulo, os lugares reservados aos sacerdotes, governantes e oficiais da Inquisição. Os condenados, minguadas suas forças pela tortura, praticamente se arrastam pelas ruas. Todos permaneceram muitos dias, meses ou anos em uma pequena prisão, desumana, fétida e sem iluminação, imprópria até para animais.

O poder dos papas

Em nenhum momento concediam aos réus qualquer direito de apelação da sentença. Os advogados nomeados eram fiéis papistas; defendiam menos os direitos dos acusados do que os interesses de Roma. A sentença é inapelável, dura, cruel. É a Igreja “verdadeira e soberana” exercendo o seu poder absoluto; poder não adquirido de forma natural, mas imposto, como veremos a seguir:

“Foi Inocêncio III o primeiro que estabeleceu, na célebre decretal [carta do papa} Novit, a teoria posteriormente reproduzida por todos os papas, de que ao bispo de Roma cabe o direito de intervir como juiz onde quer que se tenha cometido um crime importante, ou levantado alguma grave acusação, incumbindo-lhe impor penas, e anular sentenças da justiça civil. Dadas as razões em que se fundava esse direito de recente invenção, cumpriria distribuí-lo igualmente nas respectivas esferas, a todo sacerdote, pastor ou bispo; donde resulta uma dominação universal do clero sobre a sociedade leiga…”(3).

Cabia a qualquer cristão, “dar contas ao papa de qualquer pecado grave, ficando ele sujeito a ser punido na progressão de uma escala penal, que pode ao cabo chegar à aplicação da pena de morte. Em verdade, o que desobedecer a uma ordem pontifícia, já por esse fato acha-se incurso em heresia, ou, pelo menos, cheira já não pouco a fogueira; portanto, ao arbítrio do papa está excomungá-lo, a cada transgressão que perpetrar. E, se durante um ano inteiro permanecer proscrito da igreja, sem que, por submisso aos mandamentos de Roma, chegue a merecer absolvido, será declarado herege, sofrendo confiscação de bens e morte” (4).

“No Século XIII, o papado achava-se no auge de seu domínio secular; era independente de todos os reinos; governava com uma influência jamais vista ou possuída por cetro humano algum; era o soberano dos corpos e das almas; para todos os propósitos humanos, possuía um poder incomensurável para o bem e para o mal. Poderia ter espargido literatura, paz, liberdade e cristianismo até os confins da Europa, quiçá do mundo. Não obstante, sua natureza era adversa; seu triunfo maior apenas exibiu seu mais pleno mal. E, para vergonha da razão humana, para terror e sofrimento da virtude humana, Roma, no momento de sua grandeza consumada, pariu, e deu horrendo e monstruoso nascimento à INQUISIÇÃO!” (5).

A partir da leitura dessas notas, podemos entender, mais ou menos, como e porque foi possível a instituição da terrível Inquisição, e como se manteve por vários séculos com plenos poderes sobre a sociedade civil e leiga. Os papas Alexandre III (1159-81), Inocêncio III (1198-1216) e Gregório VII (1073-1085) implantaram a idéia de “ser o papa representante de Deus na terra; seu parecer é que ele está colocado neste mundo como guarda supremo e soberano dotado de uma vigilância e de uma previdência análogas às da Providência divina, para velar pela humanidade, assim em suas relações sociais e políticas, como nas religiosas, e persuade-se de que é seu dever aniquilar todas as resistências”(6).

Os emissários dos papas, inquisidores e demais papistas, não executavam diretamente as torturas, nem acendiam eles próprios as fogueiras, embora acompanhassem esses atos criminosos. Após os interrogatórios, concluídos os processos, os desgraçados eram entregues ao braço secular, ou seja, às autoridades civis, que, sob coação, eram obrigadas a cumprir as ordens papais:

“Agora, porém, eram os papas que constrangiam os bispos a submeter à tortura os que professassem opinião dissidente; era o vigário de Cristo, que forçava o clero a sentenciar a cárcere e a morte; era o bispo de Roma, que, sob pena de excomunhão, coagia as autoridades civis a que lhes executassem as condenações” (7).

Os governantes sabiam que se negassem submissão à autoridade papal incorreriam em grave heresia, e como tal seriam julgados.

“Não era no poder dos príncipes seculares que residia a força obrigatória das leis adversas à heresia, senão na soberana autoridade do papa, senhor da vida e morte de todos os cristãos como representante de Deus na terra. Logo, segundo a constante doutrina da cúria romana, a cada príncipe, a cada autoridade civil corre a obrigação de executar à risca os julgamentos dos inquisidores. No intuito de constrangê-los a isso, guarda-se certa gradação: começam por excomungar os que governam; depois, os que com se relacionam com eles; e, se não basta, ferem a cidade com interdição. Se acaso resistem ainda mais tempo, destituem-se as autoridades. Afinal, frustrados todos esses meios, priva-se a cidade do bispado e de todo o comércio com as demais”(8).

Podemos dizer que a Igreja de Roma era a dona da situação. Uma cidade sob interdição papal sofria terrivelmente; os sacramentos não eram ministrados; as almas ficavam sofrendo no “purgatório” por falta de missas; os cemitérios deixavam de receber os mortos, e as atividades comerciais entravam em declínio. Sob pressão popular, os governantes capitulavam e cediam.

Bom lembrar que o poderio papal, como acima descrito, faz parte do passado. Hoje, o governante da Igreja Católica, que detém o título de “Sumo Pontífice” e “Vigário de Cristo”, exerce seu poder e influência nos limites de sua Igreja. O atual papa, por exemplo, numa demonstração de humildade, pediu perdão por alguns erros do passado. A autoridade do papa é assim definida:

“O Papa, Bispo de Roma e sucessor de S. Pedro, é o perpétuo e visível princípio e fundamento da unidade, quer dos Bispos, quer da multidão de fiéis. Com efeito, o Pontífice Romano, em virtude de seu múnus de Vigário de Cristo e Pastor de toda a Igreja, possui na Igreja poder pleno, supremo e universaL. E ele pode exercer sempre livremente este seu poder” (Catecismo da Igreja Católica, item 882).

Na Igreja Católica Apostólica Romana, o papa, na qualidade de principal gestor, exerce realmente todo o seu poder, e não poderia ser de outra forma. Todavia, a ICAR diz que ele detém plenos poderes no reino espiritual, como está escrito no item 937 do mencionado Catecismo: “O Papa tem, por instituição divina, poder supremo, pleno, imediato e universal na cura das almas”.

Se a expressão “cura das almas” refere-se à salvação das almas, a afirmação acima é uma pura heresia. O meio de salvação está expresso na Bíblia: “Pois é pela graça que sois salvos, por meio da fé – e isto não vem de vós, é dom de Deus – não de obras [penitências, esmolas] para que ninguém se glorie” (Efésios 2.8-9). Jesus disse: “Quem nele crê [no Filho] não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no nome do unigênito Filho de Deus” (João 3.18). Todos os que crêem fazem parte da Igreja de Cristo, Seu Corpo..

Reconhecimento dos erros

Os vários pedidos de perdão formulados pelo atual papa, além de demonstrar a falibilidade de seus predecessores, indicam que vivemos em outros tempos. São exemplos recentes os pedidos às vítimas pelos abusos sexuais cometidos por padres, e, em janeiro de 1998, pelos problemas causados ao astrônomo Galileu. Vejam:

“O Vaticano anunciou na quarta-feira passada a maior demonstração de expiação pública da história do catolicismo: um documento de noventa páginas pedindo perdão por uma série de pecados cometidos em seus 2.000 anos de existência. Desde que foi escolhido para o trono de São Pedro, em 1978, por quase uma centena de vezes o papa João Paulo II mencionou erros históricos cometidos pela Igreja Católica e pediu o perdão divino para a culpa que a instituição e seus seguidores acumularam ao longo dos tempos. Pela primeira vez, contudo, todos esses pecados do passado foram citados em conjunto, aproveitando o início da Quaresma do ano 2000. O documento atende mais ao desejo de contrição dos autores do que à necessidade de reparação das vítimas. Criada para ser uma mensageira do amor entre os homens, a Igreja, levada por seu crescente poder temporal, deu mostras de intolerância, opressão e corrupção. Esses episódios do passado são hoje um peso na consciência do catolicismo e é por eles que o papa não se cansa de se desculpar. ‘A Igreja hoje é mais livre para confessar seus pecados e convidar os outros a fazê-lo’, disse o cardeal Joseph Ratzinger, que presidiu a comissão designada para colocar no papel as bases históricas e doutrinárias para o mea-culpa”.
O documento, intitulado “Memória e Reconciliação: a Igreja e as Culpas do Passado”, agrupou as incorreções em blocos que abrangem praticamente toda a história da Igreja:

1. pecados cometidos a serviço da verdade: intolerância com os dissidentes e guerras religiosas. Compreendem as cruzadas e a Inquisição.

2. pecados que comprometeram a unidade dos cristãos. Abrangem os grandes cismas, que afastaram os católicos dos ortodoxos e dos protestantes, principalmente.

3. pecados contra os judeus. Referem-se à campanha de depreciação contra o povo judeu e de certa forma ao papel ambíguo da Santa Sé durante a perseguição nazista aos judeus na II Guerra Mundial.

4. pecados contra os direitos dos povos e o respeito à diversidade cultural e religiosa. Aqui o alvo é a evangelização forçada colocada a serviço da colonização de povos dominados” (9).

É sabido que outros grupos religiosos cometeram excessos, mas também é sabido, pelas evidências históricas, que a Inquisição superou tudo em barbárie e desprezo pelo ser humano. Os crimes da Inquisição se agravam pelo fato de terem sido cometidos por ordem e em nome de homens que se diziam representantes diretos de Deus, partícipes de um grupo religioso que se auto-intitula a “Igreja Verdadeira”, a única capaz de promover a salvação das almas. Qual era a Igreja de Cristo naquele tempo das trevas? A que caminhava, sob açoites, para as fogueiras da Inquisição; a que apesar das torturas e da morte iminente não renunciava à fé, ou era a que afiava o machado, preparava o cadafalso e acendia as fogueiras?

Os hereges

Era acusada de heresia a pessoa que praticasse leitura de livros contrários à doutrina católica; fosse amigo de protestante; manifestasse intenção de defender um herege, ou tentasse amenizar o sofrimento de algum condenado; não ir à missa com a regularidade exigida; pregar o evangelho livremente e vacilar na fé; não aceitar a autoridade papal; não fazer qualquer gesto de reverência ao passar defronte a um templo católico; colocar em dúvida a jurisdição da Inquisição; resistir a algum dos oficiais; refutar qualquer dogma da Igreja Católica.

“O papa Inocêncio III declarava que o simples fato de não querer jurar, ou afirmar que o juramento era um ato culposo, encerra heresia digna de morte. Também ordenou esse mesmo papa que se tratasse como herege todo aquele que, fosse no que fosse, divergisse do gênero de vida habitual entre o vulgo” (10).

A Igreja Católica, hoje, classifica como heresia “a negação pertinaz, após a recepção do Batismo, de qualquer verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dessa verdade”. Diz que “apostasia é o repúdio total da fé cristã”, e cisma, “a recusa de sujeição ao Sumo Pontífice ou da comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos” (11).

A Igreja de Roma diz que fora dela não há salvação, “por isso não podem salvar-se aqueles que, sabendo que a Igreja católica foi fundada por Deus por meio de Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disso não quiserem nela entrar ou nela perseverar” (12). Em resumo, na avaliação de Roma, os protestantes ou “irmãos separados” são hereges e cismáticos porque não se sujeitam ao Sumo Pontífice.

Nestes tempos de acenos ecumênicos, a questão da heresia dos protestantes é suavizada pelo Vaticano, quando diz que “os que hoje em dia nascem em comunidades que surgiram de tais rupturas e estão imbuídos da fé em Cristo não podem ser argüidos de pecado de separação, e a Igreja católica os abraça com fraterna reverência e amor. Justificados pela fé recebida no Batismo, estão incorporados em Cristo, e por isso com razão são honrados com o nome de cristãos e merecidamente reconhecidos pelos filhos da Igreja católica como irmãos no Senhor. O Espírito de Cristo serve-se dessas igrejas e comunidades eclesiais como meios de salvação cuja força vem da plenitude de graça e de verdade que Cristo confiou à Igreja católica. Todos esses bens provêm de Cristo e levam a Ele e chamam, por eles mesmos, para a “unidade católica” (13).

A salvação dos evangélicos, que independe de reconhecimento de homens ou de qualquer sistema religioso, consiste em sabermos que pela aceitação de Jesus como nosso Senhor e suficiente Salvador fomos recebidos como filhos de Deus, e temos garantida a salvação pela ”graça, mediante a fé” (João 1.12; Efésios 2.8).

Conforme o Manuel dos Inquisidores (14) os hereges eram classificados em “hereges pertinazes e impenitentes aqueles que interpelados pelos juízes, convencidos de erro contra a fé, intimados a confessar e abjurar, mesmo assim não querem aceitar e preferem se agarrar obstinadamente aos seus erros. Estes devem ser entregues ao braço secular para serem executados”.

“Chamam-se hereges penitentes os que, depois de aderirem intelectual e efetivamente à heresia, caíram em si, tiveram piedade de si próprios, ouviram a voz da sabedoria e abjurando dos seus erros e procedimento, aceitaram as penas aplicadas pelo bispo ou pelo inquisidor”.

“Hereges relapsos os que, abjurando da heresia e tornando-se por isso penitentes, reincidem na heresia. Estes, a partir do momento em que a recaída fica plena e claramente estabelecida, são entregues ao braço secular para serem executados, sem novo julgamento. Entretanto, se se arrependem e confessam a fé católica, a Igreja lhes concede os sacramentos da penitência e da Eucaristia” (14).

“Hereges judaizantes” ou “cristãos-novos” eram chamados os judeus ou portugueses descendentes de judeus que, forçados a receberem o batismo católico – como registrado na história da Inquisição em Portugal – continuavam praticando secretamente a crença judaica.

Dos processos

Nos dias de hoje, em que respiramos liberdade e plenos direitos de defesa, mormente nos países democráticos, entendemos como processo criminal uma peça jurídica que envolve acusação, defesa e as devidas e imprescindíveis provas. No tempo da Inquisição era completamente diferente. A acusação poderia ser feita por qualquer pessoa, até anônimos e crianças podiam acusar de heresia qualquer pessoa. A denúncia era a prova; o julgamento era secreto e particular; o réu “confesso” podia “beneficiar-se” com a absolvição dada por um padre, para livrar-se do inferno; as testemunhas poderiam ser submetidas a tortura, se entre elas houvesse indícios de contradições; velhos de até 80 anos de idade estavam sujeitos a serem processados e sofrerem as penalidades decorrentes.

Tão logo recebiam a denúncia, os inquisidores providenciavam a prisão do acusado. A partir daí ele ficava preso e incomunicável por um tempo indeterminado. Qualquer tentativa da família ou de amigos de demonstrar interesse pelo livramento do “herege”, poderia ser arriscada, pois amigos de herege também são hereges.

“Um preso da Inquisição nunca pode ver o rosto de seu acusador, nem dos que testemunhavam contra ele. Todas as ameaças e torturas são empregadas para obrigá-lo a acusar a si mesmo, a fim de corroborar, assim, suas evidências”. (15).

As penas aplicadas variavam entre: 1) reclusão carcerária, temporária ou perpétua; 2) trabalhos forçados nas galés; 3) excomunhão e entrega às autoridades seculares para serem levados à fogueira. O confisco dos bens e flagelação das vítimas eram de praxe em todos os casos.

A legislação do Tribunal do Santo Ofício

Em razão de seus métodos, sua legislação eclesiástica, regimento e hierarquia, podemos considerar que a Inquisição foi um crime muito bem organizado. O terceiro Concílio de Latrão, em 1179, decretou a perseguição permanente aos “hereges”. Os leigos eram obrigados a prestar informações para o bom desempenho do trabalho, ainda que fosse uma simples suspeita.

Em 1184, o Concílio de Verona, convocado pelo papa Lúcio III (1181-1185), ordena aos arcebispos e bispos visitarem ou mandarem visitar, em seu nome as paróquias suspeitas de heresia, e estabelece severas penas contra os heréticos, tais como banimento, confisco, demolição de casas, declaração de infâmia e perda de direitos civis. Nesse encontro estabeleceram-se as bases da Inquisição que seria oficializada mais tarde.

O quarto Concílio de Latrão, convocado em 1215 pelo papa Inocêncio III, “prevê que os condenados por heresia devem ser entregues às autoridades seculares para serem castigados. No caso de clérigos, deverão ser desligados de suas Ordens. Quanto aos bens, serão confiscados”. Uma das deliberações do Concílio foi a condenação de “todos os hereges sob qualquer denominação com que se apresentem; embora seus rostos sejam diferentes, estes se encontram atados por uma cola, pois a vaidade os une” (16).
“Assim como o diabo e os demônios, criados por Deus naturalmente bons pela vaidade foram expulsos do paraíso, também por causa da vaidade os hereges devem ser expulsos do convívio social”. (14)
“Os que recebiam, ajudavam e defendiam hereges, ainda que clérigos, seriam excomungados. Como estes, não poderiam exercer cargos públicos, receber os sacramentos, sepultura cristã ou heranças. Suas esmolas e ofertas seriam rechaçadas. Por outro lado, os que “… armarem-se para dar caça aos hereges, gozarão da indulgência e do santo privilégio concedidos aos que vão, em ajuda, à Terra Santa ” (16). Oferecer perdão dos pecados era uma das armas usadas pelos papas para conseguirem adesão à caçada humana.

Como vimos no início, o papa Inocêncio IV, pelo documento “Ad Exstirpanda”, de 1252, ordenou que “os hereges devem ser esmagados como serpentes venenosas”.
“De 1200 a 1500 desdobra-se ininterrupta uma longa enfiada de ordenanças pontifícias acerca da inquisição, e, em geral, acerca de tudo quanto entende com a praxe que se há de observar contra a heresia. Essas ordenações vão-se agravando cada vez mais de uma a outra, qual a qual sempre mais cheia de dureza e crueldade. É uma legislação essencialmente inspirada de um só espírito. Cada papa, ao subir ao trono, ratifica as disposições de seus antecessores, e acrescenta mais um andar ao edifício, que outros começaram. Todas as palavras dessa legislação convergem a um só intento: extirpar absolutamente qualquer desvio contra a fé” (17).

Manual dos Inquisidores

Os inquisidores necessitavam de instruções práticas para bem conduzir os diversos trabalhos a seu cargo. Surgiu, portanto, o Manual dos Inquisidores, uma espécie de regimento interno do Santo Ofício, inicialmente elaborado pelo dominicano Nicolau Eymerich, em 1376. Posteriormente, o espanhol Francisco de la Peña, também da Ordem dos Dominicanos, revisou e ampliou referido manual, que ficou com nada mais nada menos que 744 páginas de texto com 240 outras de apêndices, publicado em 1585. Vejamos alguns trechos do Manual: (14)
“Que os patarinos e todos os hereges, quaisquer que sejam os seus nomes, sejam condenados à morte. Serão queimados vivos em praça pública, entregues em praça pública ao julgamento das chamas” .(Determinação do imperador Frederico e dos Papas Inocêncio IV, Alexandre IV e Clemente IV. Na verdade, a prática veio antes da própria codificação). É de fundamental importância prender a língua deles ou amordaçá-los antes de acender o fogo, porque, se têm possibilidade de falar, podem ferir, com suas blasfêmias, a devoção de quem assiste a execução”. […]
“Os inquisidores devem ser capazes de reconhecer as particularidades rituais, de vestuário etc., dos diferentes grupos de hereges. […]·É herege quem disser coisas que se oponham às verdades essenciais da fé.·Também é herege”:

a) Quem pratica ações que justifiquem uma forte suspeita (circuncidar-se, passar para o islamismo);
b) Quem for citado pelo inquisidor para comparecer, e não comparecer, recebendo a excomunhão por um ano inteiro;
c) Quem não cumprir a pena canônica, se foi condenado pelo inquisidor;
d) Quem recair numa determinada heresia da qual abjurou ou em qualquer outra, desde que tenha abjurado;
e) Quem, doente mental ou saudável – pouco importa – , tiver solicitado o “consolamento”.

Deve-se acrescentar a esses casos de ordem geral: quem sacrificar aos ídolos, adorar ou venerar demônios, venerar o trovão, se relacionar com hereges, judeus, sarracenos etc.; quem evitar o contato com fiéis, for menos à missa do que o normal, não receber a eucaristia nem se confessar nos períodos estabelecidos pela Igreja; quem, podendo fazê-lo, não faz jejum nem observa a abstinência nos dias e períodos determinados.. etc. […] Zombar dos religiosos e das instituições eclesiásticas, em geral, é um indício de heresia. […] Existe indício exterior de heresia toda vez que houver atitude ou palavra em desacordo com os hábitos comuns dos católicos”.

Nota-se que a ordem era para exterminar os “hereges”, judeus, feiticeiros, todos os que não se conduzissem conforme a cartilha de Roma; excluir do convívio suas famílias, amigos e quem lhes desse apoio.

Os instrumentos de tortura

“E, havendo aberto o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que foram mortos por amor da palavra de Deus e por amor do testemunho que deram. E clamavam com grande voz, dizendo: Até quando, ó verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra? E a cada um foi dada uma comprida veste branca e foi-lhes dito que repousassem ainda um pouco de tempo, até que também se completasse o número de seus conservos e seus irmãos que haviam de ser mortos como eles foram” (Ap 6.9-11).
Antes de entrarmos nas especificações das torturas de ordem física, dizemos que as famílias das vítimas sofriam terrivelmente. A partir da prisão, todos os bens móveis e imóveis eram confiscados. As famílias, além de serem alvo de repúdio social e zombaria pelo resto da vida, ficavam em total miséria. Vejam as notas a seguir:

“Afinal, para encher a medida, extorquiam a família inocente, por confisco legal, todos os bens de fortuna, passando metade dos haveres do condenado para as mãos dos inquisidores, remetida à outra para Roma à câmara do papa. Diz Inocêncio III que aos filhos de hereges não se deve deixar mais que a vida, e isso ainda por simples misericórdia” (18).

“A prática da tortura para obter a confissão do réu, habitual nos processos civis da época, foi repelida de início pelos papas, que chegaram a encarcerar alguns inquisidores por sua crueldade. Em 1252, no entanto, o papa Inocêncio IV autorizou o uso da tortura quando se duvidasse da veracidade da declaração dos acusados”.©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

A aplicação da tortura não foi uniforme em todos os tribunais de Inquisição, variando de um para outro país ou cidade. Regra geral, porém, a tortura começava quando os “hereges” eram jogados em masmorras imundas, onde passavam meses e até anos confinados sem o direito de qualquer comunicação com seus familiares. A tortura moral se equipara em crueldade à tortura física. Muitos morriam na prisão. Escreveu Alcides que “às vezes [o herege] era colocado ao lado de um louco para que fosse atormentado ainda mais, porque, por incrível que pareça, era do regulamento da Inquisição que se maltratasse o prisioneiro ao máximo para extrair dele também o máximo” (19).
“A Igreja Católica na Espanha empregava regularmente a tortura para “conseguir” confissões completas, e, em 1480, o papa Sisto IV deu aprovação aos processos inquisitórios e teve o apoio de Torquemada. Este, em 1483, aprovou o emprego de torturas.Temos notícias – diz o escritor – de que a Inquisição espanhola empregava 14 modalidades diferentes de suplícios, cada um pior que o outro…” (20).
Tomás de Torquemada, sobrinho do cardeal Juan de Torquemada, foi prior do convento de Santa Cruz de Segóvia, na Espanha, e passou à História pela crueldade com que conduziu, como inquisidor e papista, a Inquisição naquele país.
A seguir, uma descrição dos instrumentos de “trabalho”:

CADEIRA INQUISITÓRIA – Essas cadeiras, de vários tipos, continham até 1.600 pontas afiadas de ferro ou madeira, sobre as quais as vítimas, completamente nuas, se sentavam para serem interrogadas. Às vezes, para aumentar o sofrimento do réu, o assento de ferro era aquecido.
ESMAGA JOELHOS, POLEGARES E MÃOS – Três instrumentos distintos com funções específicas, como o próprio nome indica; uma espécie de prensa para esmagar partes do corpo.
ESMAGA SEIOS – Era o instrumento preferido no século XV para torturar as mulheres acusadas de bruxaria. O seio era envolvido por um ferro retangular, bastante aquecido. Mediante bruscos movimentos circulares, os seios eram esmagados.
DESPERTADOR – Uma dos mais terríveis instrumentos de tortura. Era uma espécie de cavalete de madeira ou de ferro, com um vértice pontiagudo. Puxados por cordas ligadas a roldanas, os hereges eram suspensos até certa altura; depois, num lance rápido, eram lançados sobre o “despertador”, de tal forma que o ânus e partes sexuais tocassem a ponta da pirâmide. Pode-se imaginar o quanto sofria homens e mulheres que tinham as partes íntimas rebentadas, tais como testículos, vagina e cóccix.
RODA DE DESPEDAÇAMENTO – Esse tipo de tortura consistia em colocar o réu de costas sobre uma roda de ferro, sob a qual colocavam brasas. Em seguida, a roda era girada lentamente. A vítima morria depois de longas horas de dor indescritível, com queimaduras do mais alto grau. Não havia pressa para a morte do supliciado. Antes, havia o cuidado de prolongar ao máximo a sua agonia. Numa outra versão, a roda era usada para dilacerar o corpo dos condenados. Neste caso, em lugar de brasas, colocavam instrumentos pontiagudos sob a roda.
MESA DE EVISCERAÇÃO – Um dos mais cruéis instrumentos de suplício. Destinava-se a extrair aos poucos, mecanicamente, as vísceras dos condenados. Após a abertura da região abdominal, as vísceras, uma por uma, eram puxadas por pequenos ganchos presos a uma roldana, girada por um carrasco.
PÊNDULO – Usado para deslocamento de ombros e como preparativo para outros tipos de tortura. A vítima era levantada por cordas presas aos pulsos e depois bruscamente solta. Antes de chegar ao solo, era suspensa outra vez. O suplício, repetido várias vezes, causava deslocamento das articulações.
CAVALETE – Usado na Inquisição portuguesa, consistia em deitar a vítima de costas sobre uma espécie de mesa, com material cortante, e, através de um funil colocado na boca, encher seu estômago de água. Depois, o carrasco pulava em cima da barriga do desgraçado réu, forçando a saída do líquido. A operação era repetida até a morte.
A VIRGEM DE FERRO OU VIRGEM DE NUREMBERG – Instrumento oco com o tamanho e a forma de uma mulher, dentro do qual as vítimas, uma de cada vez, eram colocadas. Facas eram arrumadas de tal maneira e sob tal pressão que o acusado recebia um abraço mortal. Cuidava-se de que regiões letais não fossem atingidas para proporcionar uma morte lenta.
MANJEDOURA – Uma longa caixa onde o acusado era deitado de costas, e amarrado pelas mãos e pés. O suplício consistia em esticar o corpo do herege até obter o desmembramento das juntas.
Outros instrumentos de tortura da Idade Média foram usados pelos inquisidores. Nas execuções usava-se muito o fogo brando, a partir dos pés untados com óleo; hereges eram serrados ao meio; mutilados aos poucos; amarrados por longo período em troncos de madeira; colocados em posições dolorosas e inusitadas para causar cãibras, que poderiam levar o réu à loucura; esfolados vivos.
O Tribunal do Santo Ofício foi “a instituição mais impiedosa e feroz que o mundo já conheceu em sua destruição de vidas, propriedades, moral e direitos humanos” (21).

NOTAS:
01. PERES, Alcides Conejeiro, A Inquisição e os Instrumentos de Tortura da Idade Média, 7a ed.,Rio de Janeiro: CPAD, 2002, p.60.
02. FOX, John, O Livro dos Mártires, publicado em latim em 1554, 1a ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2001, cap. V, p.72.
03. JANUS, O Papa e o Concílio, 2a ed., tradução e introdução por Rui Barbosa, São Paulo:Saraiva, 1930, pp. 461/2.
04. Ibid., p. 466.
05. FOX, op. cit., p. 98.
06. JANUS, op. cit., p. 456.
07. Ibid., p. 520.
08. Ibid., p. 523.
09. Revista Veja Online, ed. 1640, 15.3.2000.
10. JANUS, op. cit., p. 520.
11. Catecismo da Igreja Católica, 9a. ed., Petrópolis: Vozes, 1998, item 2089, p. 550.
12. Ibid., item 846, pp. 243/4.
13. Ibid., itens 818/9, p. 235.
14. EYMERICH, Nicolau, Le Manuel des Inquisiteurs (Directorium Inquisitorum), revisto por Francisco de La Pena, 1578, traduzido para o francês em 1973 por Luis Sala-Moulins.
15. FOX, op. cit., p. 72.
16. SILVA, Andréia Cristina Lopes F., O IV Concílio de Latrão, internet. (http://www.ifcs.ufrj.br/~pem/html/Latrao.htm).
17. JANUS, op. cit., pp. 520/1.
18. Ibid., p. 525.
19. PERES, op. cit., p. 147.
20. Ibid., p. 162
21. ROSA, Peter de, Vicars of. Christ: The Dark Side of The Papacy (Crown Publishers, 1988), p. 179, citado por Dave Hunt, A Mulher Montada na Besta, vol, Actual Edições, Porto Alegre, 2001, p. 248.
www.palavradaverdade.com

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