A Tortura das Inquirições

Ontem, ao vivo e em cores, assistimos à utilização de métodos de tortura moral, comparáveis aos usados durante a diabólica Inquisição. Após nove horas de intensos interrogatórios, a vítima apresentava na face e na alma visíveis sinais de fragilidade emocional. Num momento de angústia, exclamou para ouvidos moucos: “Estou no meu limite”. A platéia exigia mais; havia um clamor por mais sangue. Não adiantaram os apelos de alguns para que houvesse moderação e sabedoria.

Inquisição é ato de inquirir, indagar, interrogar judicialmente. É também o nome dado ao antigo tribunal eclesiástico instituído para investigar e punir crimes contra a fé católica. Na Inquisição, os torturadores mostravam os cárceres pútridos e os instrumentos de tortura. Levavam os réus à sala dos suplícios para que se dobrassem às evidências. “A Igreja Católica na Espanha empregava regularmente a tortura para conseguir `confissões completas´, e, em 1480, o papa Sisto IV deu aprovação aos processos inquisitórios e teve o apoio de Torquemada. Este, em 1483, aprovou o emprego de torturas” (A Inquisição e os Instrumentos de Tortura da Idade Média, Alcides Conejeiro Peres, CPAD, 7ª Edição, p. 162).

Na inquirição de ontem, foram usados métodos de tortura moral. A investigada recebeu diversos tipos de ameaça, algumas diretas, outras veladas: confisco de bens, prisão, linchamento pela sociedade, afastamento dos amigos, situação degradante juntos aos filhos e genitores, e outras. Ela foi instada a delatar outras pessoas supostamente envolvidas, gesto que poderia lhe valer atenuação da pena condenatória. O ápice da tortura se deu durante as perguntas de um inquiridor competente. Ao ver a vítima sangrando pelos olhos, já nas últimas forças, com dificuldade para um raciocínio lógico, ele, com um breve sorriso de domínio sobre a caça exangue, deu o tiro de misericórdia: “A senhora sabe o que é tortura moral?”.
Na Inquisição, as perguntas eram repetidas à saciedade. Não importava quantas vezes o herege as havia respondido. O objetivo da estratégia era provocar um deslize, uma palavra mal colocada, e, principalmente, uma contradição, por menor que fosse. Entenderam? E uma contradição seria o início do linchamento. Os inquisidores sabiam que cedo ou mais tarde a vítima se dobraria. Ou pelo peso das evidências, ou pelo peso da chibata. Os inquisidores queriam a todo custo encarcerar os hereges. E o faziam por motivos banais. Nenhum salvo-conduto seria capaz de livrá-los do cárcere. A Inquisição estava acima do bem e do mal.
Quando os supliciados estavam prestes a desmaiar, os inquisidores suspendiam a sessão para que fossem reanimados. Quando a vítima retornava a arena, inquisidores haviam sido substituídos por outros, estes bem alimentados, mente fértil, raciocínio rápido, em contraste com uma vítima abatida, vencida pelo cansaço. Havia muito de sadismo na Inquisição. Naquele tempo, já existia o instituto da “delação premiada”, isto é, “conte tudo que sabe e receberá misericórdia”.
“Pediam ao preso que fizesse um exame minucioso de consciência para que não deixassem de dizer nada a respeito do que era acusado, advertindo-o de que deveria confessar tudo, em seu próprio benefício (e aí havia uma ameaça velada). Prometiam-lhe misericórdia se fosse obediente às determinações do tribunal, porque caso contrário… Deveria descarregar a sua consciência para o despacho do processo a salvação de sua alma, porque o corpo com certeza seria queimado” (Ibidem, p. 144).
“Os presos eram envolvidos em astúcias tais e em tão insistentes interrogatórios que não se livravam de contar detalhes daquilo que tinha feito e daquilo que nunca tinham pensado fazer. Somando as astúcias dos inquisidores, o horror do sofrimento em fétidas masmorras, a pressão psicológica por não saberem nada a respeito do dia futuro, sem ao menos poder trocar idéias com seus colegas de infortúnio, pode-se avaliar o estado físico e mental dos pobres prisioneiros” (Ibidem, p. 148).
Na Inquisição, os investigados não podiam recorrer a advogados. Durante os intensos interrogatórios, nenhum direito tinham de consultar familiares ou pessoas mais instruídas. Ontem, os inquiridores se colocavam vigilantes para evitar que a vítima recebesse qualquer instrução de outrem. É bom que fique isolada. O isolamento constrange. Sabiam que o cansaço mental é uma arma poderosa, e que com o passar das horas a interrogada perderia a altivez dos primeiros momentos, e cairia de joelhos.
Na inquirição de ontem, o rosto da investigada era um quadro, não digo de horror, mas de plena fadiga moral. Sua voz, antes forte e bem aplicada, foi-se desmoronando; ficou quase inaudível. Apesar dessas evidências, as perguntas se sucediam cada vez mais vigorosas e repetitivas. A caça ainda respirava, movia-se; era preciso colocá-la no alforje: “Não posso mais responder”, protestou a paciente; menos um protesto do que um brado. Comecei a angustiar-me. Quando ela chorou, chorei junto. Olhava-a com os olhos do coração e com sentimentos de misericórdia. Não enxergava mais a mulher dos milhões de dólares, nem a empresária envolvida num turbilhão de falcatruas. Considerava que haviam sugado dela o sumo do sumo do sumo. Apenas o bagaço estava ali presente, reunindo forças para receber mais inquiridores.
A impressão que tive é que ela iria desmaiar diante de cinqüenta milhões de telespectadores. Por empatia, estava convicto de que não suportaria nova série de interrogatórios. Mas havia ao seu lado um homem de sentimentos elevados. Ele também sentiu que as forças da denunciada se exauriam. Usou da sua misericórdia: “Por entender que chegamos ao limite, encerro a presente sessão”.
27.07.05

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